terça-feira, 29 de junho de 2010

Último conto da estação

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Porque era primavera, a tarde colheu na palma a última andorinha, amansou-lhe a carne, acalantou-a, sorveu-lhe o sangue e enterrou no horizonte sua semente. Foi de lá, do fim do horizonte, onde vive o arco-íris, que o bando de andorinhas recém-nascidas partiu ao encontro do mais fabuloso verão.
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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Stephen in the sky

Dizem por aí que escritor que se preze tem um gato. Um gato que se deita sobre a folha de papel que espera apenas o deitar da palavra. Eu sei que parece história inventada (eufemismo para mentira) mas já tive 15 gatos em casa. De uma vez só. E aqui começa a história de Stephen Fry.

Maria trouxe do colégio um filhote de gato preto. Trouxe-o porque o encontrou vagando pelos corredores, atônito, sem saber em que série estudava. Trouxe-o debaixo do braço. De ônibus.

O gato preto foi recebido com carnaval em casa e passou a se chamar Gato Preto, embora tenhamos logo percebido que se tratava de uma fêmea – que enquanto viveu, procriou três vezes e deixou várias herdeiras. Não é preciso dizer que por essa época ficamos impedidas de receber visitas. Havia gatos morando no sofá. Rasgando o sofá. Mijando no sofá. Gatos de todas as cores possíveis, porque a Gato Preto fazia dessas cachorradas de variar os parceiros.

Foi quando percebi que não mandava mais em minha própria casa – os gatos já dormiam em minha rede, trocavam o canal na hora da novela e usavam meu hidratante – que comecei a doar gatos. Pra quem não aceitava logo, eu dava o gato mais uma nota de 20. Alguns foram assassinados pelo vizinho, que todas as noites se armava de uma cerca elétrica.

Dos 15, sobrou Stephen Fry. Sobrou porque foi devolvido por uma das pessoas que aceitaram a doação. Voltou para casa magro, triste, sem a nota de 20, e se tornou o gato mais importante da história da minha vida. Era branco e cinza, e tinha – creia, por favor – os olhos de Brad Pitt. Foi o maior cafajeste de sua geração em nosso bairro. Não havia gata que resistisse ao seu charme e gato que não lhe quisesse partir a cara. Mas foi também a criatura mais doce da família, capaz de me fazer carinho nos cabelos na hora da sesta – que ele não abria mão de tirar comigo.

Sophia, a poodle, nutria por ele uma paixão desesperada. Por que não? Até onde se via, o mundo deles era o mesmo. Tico-Lyn, o marido da poodle, olhava como se nem fosse com ele. Stephen aceitava, e talvez até correspondesse àquele amor. Libertário, fingia cochilar sobre um livro aberto do Roberto Freire: Ame e dê vexame. Cada dia num capítulo diferente.

Suas sete vidas duraram quatro anos. Faz um que ele foi rasgar sofá no paraíso. Hoje, logo que acordei, bateram à porta. Fui abrir e dei de cara com a saudade de Stephen. Está aqui até agora, tomando café comigo num copinho de geleia.

Sou uma escritora órfã de gato. Todos os dias pratico a escrita, a leitura e a saudade. Às vezes choro pelos meus 15 gatos e por outras razões. Mas são por Stephen Fry as minhas lágrimas mais honestas.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Naquele tempo

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Naquele tempo (disse Jesus aos seus discípulos...). Eu tinha a maior vontade de começar um texto assim, com esta expressão e com estes parênteses, tinha medo de fazer imitação barata de Mario Prata. Agora já fiz e está feito. Mário Prata nem vai ficar sabendo, esse mundo é muito grande. Enfim, naquele tempo, eu era consumida pela vontade de conversar sobre as coisas que lia, sobre as coisas que escrevia... Queimava-me o desejo de abrir o livro que estava lendo, e ler trechos em voz alta para o meu interlocutor, ao que ele poderia dizer puxa vida, que lindo, de onde esse cara foi buscar inspiração pra escrever uma coisa tão louca?... Você não acha que ele pode ter sofrido a influência do fulano de tal ou ter sido tocado pelo movimento tal? E eu, morta de feliz, responderia.

Ou então imprimir um texto fresco, recém-saído da alma pendurada nas pontas dos dedos que o digitaram, e mostrar a alguém que pudesse dizer ao menos eu, hein... que coisa piegas... você já escreveu coisas melhores. Talvez fosse chato ouvir. Mas não tanto quanto jamais receber a opinião.

Utilizei os mais óbvios e os mais inusitados recursos na tentativa de captura de um interlocutor que me satisfizesse esse ardente desejo. E nesse percurso desatinado, encontrei tipos com desejos bem mais estranhos que os meus. Um deles desejava apenas olhar para a lua com a atenção de um astronauta enquanto eu me enredava em impressões sobre as publicações digitais. Outro desviava sempre o assunto para um sonho que lhe era recorrente desde a infância. Um outro ainda apenas fumava, em silêncio, olhando sorrateiramente pelo espelho o jogo de futebol na televisão às suas costas. Eu poderia abrir aqui um breve parágrafo para singulares exceções. Mas não. As exceções me compreendem, porque afinal são exceções.

Aquele tempo passou, porque o tempo, o mais disciplinado dos fenômenos (blablablá...), cumpre sua obrigação de passar, aconteça o que acontecer. E eu sinto muito por ter descoberto, à custa de muito empenho de meus eventuais interlocutores – que passaram vidas tentando me mostrar – o que era evidente desde o princípio: eu sou uma grande chata. Meu vício em literatura é incurável. Eu realmente lamento... Enfio a viola – ou o livro, a folha avulsa, o manuscrito – no saco e saio de cena de mansinho, se o papo não está agradando. Mas naquela vontade nada põe rédeas. Nem a viagem do tempo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Petite danseuse*

Da série Breves Contos

Para Aline

Antes de desaparecer, a pequena bailarina ainda foi vista numa lufada branca de brisa, no gás azulzinho dos cirrus, num raio lilás do sol, rodopiando num perfeito pas de deux¹ com um anjo celestial de seis asas – um serafim. Dizem que nunca fora tão bela como naquela aura de alvura e tules derramada na amplidão. E dizem também que o serafim, apaixonado por seu detourné² e atrapalhado com tantas asas, enredou-se numa nuvem, enquanto ela subia, no mais harmonioso grand plié³, ao último limite do céu. Depois, e para sempre, ainda que os céus se misturassem com a terra, confundindo anjos com pobres mortais, abrindo caminhos entre nuvens de madrepérola para o vaivém dos pássaros e a ciranda das estrelas em plena pátria do ballet, somente ao olhar divino foi permitido testemunhar a dança da petite danseuse.

*Pequena bailarina

1, 2 e 3 – Passos do ballet clássico

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O ponto final de Wilson Bueno

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Quando um escritor morre, coloca o ponto final – definitivo – em sua obra. Mas por maior que seja a obra, sempre me causará impressão maior ainda a sua morte – esse mistério sem tempo, sem idade, sem destino certo. Assim estou hoje, impressionada e triste com o ponto final do escritor Wilson Bueno. Um ponto vermelho, escrito a sangue. O escritor paranaense, assassinado em Curitiba no dia 31, faz parte de uma geração de escritores que enriqueceram ainda mais a literatura brasileira (como Paulo Leminski e Manoel Carlos Karam), e muito certamente terá levado com ele a inigualável irreverência da linguagem. Dele li apenas um livro, Cachorros do céu, e devo dizer que logo percebi o quanto Bueno arriscava na escrita. Sua prosa é fundamentalmente inventiva.

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Wilson Bueno tem livros publicados no Chile, Cuba, México, Argentina e EUA, como A copista de Kafka, Amar-te a ti nem sei se com carícias e Cachorros do céu. Deixou pronto Mano, a noite está velha, ainda sem data para publicação, e deixou triste minha Maria, que tem como tema de sua pesquisa de mestrado a vida e a obra do escritor. Agora Maria tem também o seu ponto final definitivo para estudar. Espero que a partir dele, possa inventar palavras que traduzam a grandeza de Wilson Bueno.

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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Hoax

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Uns pares de anos atrás circulou pela internet uma carta de despedida atribuída ao escritor Gabriel García Márquez - segundo a carta, à beira da morte. Eu fui uma entre os leitores que se debulharam em lágrimas, mesmo sem ter lido a carta, pois conhecia que o escritor estava em tratamento de um cancro linfático. Os leitores mais atentos duvidaram que GG Márquez tenha escrito um texto tão sentimental. E não estavam errados. A carta foi escrita por um ventríloquo mexicano para um espetáculo chamado La Marioneta. Quem jogou na internet o texto sob a culpa de GG Márquez só Deus sabe. É o que em inglês se conhece por hoax. Um embuste, ao pé da letra. Para encerrar a conversa em que lamentou a repercussão da carta, o escritor disse: "Mais valia morrer com um cancro linfático do que ter escrito uma carta de despedida daquelas". Ele não é genial? E melhor que isso: se curou do cancro e está vivo!
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Primeira parte da carta: Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Por aí se vê a enrascada em que meteram o Gabo.
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Por falar em hoax, alguns orkuts trazem no perfil um texto atribuído a Clarice Lispector que deve ter feito a escritora virar do avesso no túmulo. Não lembro agora como é. Nem quero lembrar. Eu mesma já andei publicando por aqui um poema que todo mundo dizia que era do Maiakóvski , poeta que admiro desde antes de nascer. O poema é do Eduardo Alves da Costa, se chama No Caminho com Maiakóvski, e este sim, é tão belo que deve ter feito Maiakóvski suspirar no túmulo...
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Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Antes que eu me esqueça...

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- Conheço pouco das escritoras brasileiras. Resolvi então dar mais atenção a livros escritos por mulheres. Foi assim que conheci Adriana Lunardi, Zulmira Ribeiro Tavares, Maria Valéria Rezende... até aqui. Quando terminei a leitura de O Vôo da Guará Vermelha, desta última, corri para a estante da sala de leitura da escola onde trabalho e tomei sofregamente contra o peito O Outro Pé da Sereia, de Mia Couto. Levei-o pra casa (clandestinamente), alisei bastante sua bela capa antes de começar a ler, e ao princípio do primeiro capítulo já me encantei por completo. Ao final do capítulo, apertei-o novamente contra o peito ardente de paixão, e pensei comigo: como escreve bem... Mia Couto... que sensibilidade! E me joguei de cabeça na segunda orelha, ávida por ver a foto de Mia, conhecer os olhos, os traços faciais da escritora. Bem, basta ser um pouquinho mais antenado do que eu pra saber que Mia Couto é um homem... Um escritor moçambicano (ou quenho?) de sensibilidade comparável a Gabriel García Márquez, que escreve livros cujos títulos são o suficiente para impulsionar a leitura. Foi o caso de O Outro Pé da Sereia. Claro que agora vou até o fim. Com as mulheres eu continuo depois.

- Estou pensando em embarcar numa viagem mística para a Índia...

- Um filme para rever sempre: Diários de Motocicleta, de Walter Salles. Gael Garcia Bernal não tem cara de Che, mas convence porque é um excelente ator. Além de emocionante, o filme é engraçado. Próprio para os finais de semana em que não se quer ver nem a própria cara. Um filme para ver uma vez só: O Quarto Verde (La Chambre Verte), de François Truffaut, que antes de fazer o filme ouviu uma música do Zeca Baleiro e gostou particularmente de um verso que diz é mais fácil cultuar os mortos que os vivos. O filme, de 1978, é esquisito. Quer uma opinião mais refinada, afinada sobre os filmes? Não é aqui. É no blog Dicionários de Cinema (blogspot).

- ...ou ficar por aqui e me iniciar no Daime...

- Do Prêmio Sesc de Literatura 2010, categorias Conto e Romance, não podem participar autores que já possuam publicações nestas categorias.
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- ...antes que a vida termine.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Viagem insólita

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No dia em que resolvi desancorar das palavras tortas, achei que tinha que ir pra bem longe de tudo o que me inspirasse desassossegos: sol do meio-dia, excesso de sal, gente que não sorri, livro com traça... Tomei a última arca, conduzida por Noé, neto de Matusalém, e por um destino de nuvens diáfanas, fui tentando levar um papo esclarecedor sobre o destino do homem na margem do próximo final do tempos. O que tu achas, Noé, que aconteceu com o homem desde o último fim do mundo? Noé disse que não sabia de homens, só de bichos. Noé, que em sua arca só transporta bichos, concordou em me levar naquela viagem porque me achou parecida com um. Com um gato? Perguntei. Não, disse Noé. Com uma garça? Insisti, cheia de esperança. Também não, disse ele, já com vontade de me jogar de dentro da arca. Que eu falava demais, que estava mudando de ideia sobre eu parecer bicho, que na sua idade (ele, que no dilúvio tinha já 600 anos) não tolerava tagarelice... Viajamos em silêncio rumo ao infinito, passando pelos portões do céu, fechados, pelo portal do inferno, de portas escancaradas – como a casa da mãe Joana – até o limite de minha paciência, quando enfim resolvi perguntar quem, afinal, era meu par naquele raio de arca onde só havia casais de bichos. Foi quando Noé pareceu se tocar. Pensou um pouco, e como um cara que teve sua história contada no Gênesis e no Alcorão jamais aceitaria a humilhação de não ter uma resposta, disse: Dá um tempo... o mundo nem tá acabando. A gente só tá dando uma voltinha. Sei, eu disse, pra encerrar o assunto, e enquanto Noé manobrava a arca em retorno ao Monte Ararat – de onde nunca devia ter saído naquele dia, pra variar fiquei olhando pras nuvens. E lá estava, sobre elas, o Arco da Aliança, símbolo do pacto de Deus com Noé, compromisso de Deus de se lembrar sempre de todos os seres vivos sobre a terra. Voltei pra casa com a esperança renovada, pensando na vida, na inutilidade de se incomodar com coisas pequenas: pão com formiga, talo de alface, fogos de artifício aos domingos... pensando por onde andará o bicho que será meu par na próxima viagem.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Se bem me lembro...

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Quando Clarice Lispector morreu, na manhã de dezembro de 1977, fazia uma sexta-feira formidável. Eu tinha sardas que se abriam como flores quando o sol no rosto, pernas brancas como mandiocas recém-descascadas e uma recôndita vergonha de ser polaca. Talvez colecionasse piolhos. Não sei. Mas tinha sobre os outros a vantagem de já ter ouvido falar em Clarice Lispector. Nada, entretanto, que alguém visse como vantagem. Clarice se foi quando era a hora da estrela e eu ainda chorava sobre o túmulo de Elvis Presley.
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Naquele dia voltei da escola mais cedo, fugindo de uma ameaça de morte durante o recreio. O menino que me prometera um soco no estômago para a hora da saída era o mesmo que quebrava as vidraças da escola a pedradas, que assaltava os que possuíam lanche, que não gostava de ser olhado de frente – e este foi o meu delito. Voltei pra casa pela sombra das paineiras das alamedas desertas de Salto Santiago, colhendo furtivamente dos quintais alheios folhinhas de hortelã para o chá da tarde.
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Como me lembro disso? Todos os dias de dezembro eram formidáveis na primeira infância. Todos eram como a véspera do Natal e em todos eles havia a promessa da primeira bicicleta. Eu sempre voltava da escola pela sombra das paineiras, sempre furtava folhas para o chá e era constantemente ameaçada pelo menino louco.
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Pois na manhã em que Clarice morreu não foi diferente. Havia sol, havia vento, e havia uma paisagem magnífica enlaçando meus ombros. Não sei como, mas neste tempo improvável eu já sabia que a paisagem sempre transcenderia o que se olha. Não tinha a menor noção do que acontecia no resto do mundo – e o resto do mundo era o que sobrava depois do meu, mas já colhia daquelas caminhadas solitárias sentimentos que não tinham nome.
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Soube do fim de Clarice um tempo depois, e ele não me chegou a ter importância, pois só lhe conhecia o nome, não podia ainda lhe compreender a alma. Também tempos mais tarde o menino louco me acertou o estômago, num dia cerúleo em que eu colhia a felicidade clandestina de furtar mudas de manjericão. Levei outros socos ao longo de outros caminhos e um dia consegui dar nome aos sentimentos que povoavam as caminhadas dos meus sete anos, mas nunca deixei de olhar ninguém de frente. Precisei, porém, conhecer Lunardi*, 32 anos depois da morte de Clarice, para entender, finalmente, que naquele tempo, embora pálida e avoada, eu já pertencia à Ordem dos Corações Selvagens.
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*Adriana Lunardi é escritora, autora do livro Vésperas, entre outros tão belos quanto.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Assassinos sem lágrimas

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Em As Lágrimas do Assassino, há três noites em minha cabeceira, a escritora Anne-Laure Bondoux conta que enquanto o menino Paolo espera, com a língua pra fora, que os pingos da chuva venham lhe encher a boca e furar a vastidão de poeira de uma terra desolada no fim do mundo chileno, no interior da casa, Angel Allegria, um assassino frio e desprovido de qualquer humanidade mata os pais do menino a facadas e deixa seus corpos estendidos no chão de terra batida. Quando Paolo entra, encharcado de chuva, o assassino ainda segura firmemente a faca, mas um sobressalto de consciência o impede de pôr fim à vida do menino também. Criança eu nunca matei, diz Angel Allegria. Nem eu, responde o menino Paolo. Nem na literatura os assassinos matam crianças. É penoso demais pensar que na vida real há assassinos que o fazem. E tão perto da gente.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Crônica pra cachorro

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Ainda não consegui alcançar a filosofia da frase de Ovídio que diz “se os bichos falassem, nada diriam”, mas acho a frase um espetáculo. Tenho um enorme encantamento por bichos, e acho que o fato de não falarem com palavras foi muito bem pensado pela natureza. Quanta poesia comunica um cachorro de olhar manso para o crepúsculo, ou o de olhar sereno que parece confundir estrelas com longínquos vaga-lumes. Quanta poesia num cachorro que silencia para os latidos da madrugada, indiferente ao abandono, feliz com a própria solidão... Num cachorro que espera o dono morto de vergonha (o dono) na porta da escola. Falar pra que? É isso, Ovídio?
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Eu nunca passo por um cachorro sem cumprimentá-lo. Reconheço em todos extrema simpatia, por mais ferozes que possam parecer ou por mais medonhas que sejam as piras dos abandonados. Quanto a certas pessoas, não me lembro de onde conheço, se ao menos conheço, por mais interessantes que possam parecer. A dúvida toma tempo, passo em frente... tarde demais pra cumprimentar.
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Se eu tivesse nascido cachorro, seria um cachorro que comeria massas. Se não me dessem massas, seria um cachorro infeliz. Se tivesse nascido cachorro, gostaria de me chamar Lilih, com toda a doçura desta sonoridade e com toda a frescura que o h lhe empresta. Se me dessem o nome de Bolinha, seria um cachorro rebelde, onde já se viu, do alto de minha superioridade de cachorro manso, livre e levemente taciturno, me chamar Bolinha... Dormiria em folhas secas e ficaria olhando os navios no cais, com vontade de partir. Seria um cachorro pensativo sobre os nadas que garantem a possibilidade de filosofar sobre a vida.
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Sem dúvida, em alguma encarnação perdida por aí, eu fui cachorro. Embora gostasse mais de ter sido um gato seráfico e esquisito, um gato de todo encantamento e de inaudito miado brando*, um gato com postura de esfinge, em cujos olhos fosforescentes um chinês pudesse ver as horas, e que preenchesse de elegância e enigmas os versos de Baudelaire.
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*Do poema O Gato, de Baudelaire (que amava os gatos).

terça-feira, 4 de maio de 2010

Minha casa

Zeca Baleiro

É mais fácil cultuar os mortos que os vivos
mais fácil viver de sombras que de sóis
é mais fácil mimeografar o passado
que imprimir o futuro

Não quero ser triste
como o poeta que envelhece
lendo maiakóvski na loja de conveniência
não quero ser alegre
como o cão que sai a passear
com o seu dono alegre
sob o sol de domingo
nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda

Quero no escuro
como um cego tatear estrelas distraídas
amoras silvestres no passeio público
amores secretos debaixo dos guarda-chuvas
tempestades que não param
pára-raios quem não tem
mesmo que não venha o trem não posso parar

Vejo o mundo passar como passa
uma escola de samba que atravessa
pergunto onde estão teus tamborins
pergunto onde estão teus tamborins
sentado na porta de minha casa
a mesma e única casa
a casa onde eu sempre morei

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pra fazer barcos de papel...

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.Acabaram de me dizer que Jesus nasceu no dia 19 de abril de 6 a.C (seis anos antes dele mesmo) e que foram os romanos que armaram essa de 25 de dezembro, pra aproveitar a data em que já se comemorava a Saturnália (dedicada ao templo de Saturno). Que a estrela de Belém era o cometa Halley e que o apóstolo Paulo foi um dos maiores conspiradores para que Jesus ganhasse o status do Messias que o povo já esperava há tempos naquele tempo. Tô besta.
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.Notícia transmitida por minha mãe, que mora em uma cidade pedaço de floresta na margem da rodovia Cuiabá-Santarém, no Pará: minha filha, você nem sabe... chegou o celular por aqui!
Não pude deixar de pensar em quanto o Brasil é grande, em quanta gente está esquecida por aí...
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.Notícia de minha Maria, que mora em São José do Rio Preto, em São Paulo: “Mãe, ontem foi uma segunda-feira de arromba! Foi o lançamento do cineclube que estamos organizando aqui na Unesp, e o evento nos deu muito orgulho. Tivemos palestra sobre a história do cinema num auditório super chique, que eu não conhecia, e exibição de curtas e cenas clássicas de filmes em telão, coquetel com comidas que eu e minhas amigas do curso de Letras preparamos, sarau com direito à música ao vivo, cerveja de graça (pra nós, que trabalhamos)... foi um arraso! Eu até cantei, com um amigo me acompanhando, mais um baixista. O som estava péssimo, mas a galera, que também não era muita gente, gostou muito. Enfim, foi uma segunda-feira histórica.”
Não pude deixar de pensar em quantos modos existem de ser feliz...
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.Comemorei meu aniversário no cinema, assistindo ao filme Chico Xavier. Foi bonita a festa, pá. Fiquei contente.
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.A melhor parte do filme Chico Xavier é a passagem da ficha técnica, no final, quando são mostradas imagens reais do Chico. E a música... a música de Egberto Gismonti.
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quarta-feira, 28 de abril de 2010

A quem interessar possa...

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.Já viu alguém grudar um chiclete atrás da orelha? Pois é... O chiclete estava na pontinha da perna esquerda dos óculos, que por sua vez estavam na bolsinha lateral da bolsa, em cujo fundo um Trydent se desempacotou e amoleceu de calor. Tudo bem. O cabelo vai crescer de novo onde teve que ser raspado.
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.Se alguém tiver um livro do Roberto Bolaño, por favor, me empreste! Qualquer um serve. E eu juro que devolvo.
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.Quinta-feira passada almocei no Mercado Central de Macapá. Poderia até dizer que foi uma coisa ímpar, se eu não pretendesse almoçar lá de novo. Então foi bacana, massa, foi lindo! Pedi um prato de peixe e me sentei à mesa com dois engraxates de Fazendinha: Cleiton e Claudiomar, de 13 e 14 anos. Conversamos sobre amenidades e dividimos uma Coca-Cola. Chovia sobre a Fortaleza de São José, e o peixe tinha gosto de infância. Aquela que vivi lá no Paraná e que me tem feito cada vez mais falta.
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.“O barulho que eu mais gosto é o da chuva”, diz Catherine Deneuve no filme Les temps qui changent.”
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.Pela publicação do livro Abilash, tenho recebido cumprimentos de várias pessoas. Inclusive de meus parentes da Cracóvia. Amaru Lehel, por exemplo, me deu de presente um quadro. Ele não me conhece, nem eu a ele. Leu o livro no sebo do Ivamar, na Beira Rio, disse ter gostado muito e desejado pintar pra mim o quadro que o Ivamar depois me entregou: uma casinha na frente de duas árvores, suspensa na lua. Casinha, árvore e lua... Parece que Amaru já me conhecia.
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.Eu tenho um grande amigo chamado Christian Tell.
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.Trabalho de manhã, à tarde e à noite. De manhã ouço risos. À tarde faço promessas. À noite, transcendendo risos e promessas, derivo por mares de páginas de livros.
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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Noturno

Da série Breves Contos
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Era tarde. Quando ele chegou anunciando uma aurora boreal, com um sol aceso nas mãos, eu já havia anoitecido. Sendo um ser de hábitos diurnos, adormeceu sem ver o olhar estrelado que eu trazia para constelar sua noite.
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segunda-feira, 19 de abril de 2010

Iduna

Da série Pandora*
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Iduna colheu a loucura na caixa de Pandora

Não me perdoe. Minha nova ordem é inventar palavras que lhe façam mal. Crio-as no barro, na forja, no leito de Procusto, para que carreguem a sabedoria e o tamanho exato do que precisam dizer, ainda que seja necessário amputá-las, esticá-las, sangrá-las até a conformação. Pra você eu invento palavras de uma língua sem representação escrita que aprendi por instinto, em Caximba dos espíritos, em Babel, na margem da busca em minha própria gênese. Procuro palavras anticristo que não compõem nenhuma protolíngua e sua ancestralidade, leio entrelinhas de signos gráficos de 50 mil anos, à procura da asa que parte do mais abissal silêncio, a asa: a palavra que lhe faça mal. Não me perdoe, não quero de volta a flecha lançada, a brasa extinta, o vôo perdido. Sobrevivo porque me agarro ao fio inextinguível da palavra, porque meia palavra não me basta. Do outro lado do silêncio, me preparo para ouvir as palavras que criei pousando como corvos em seus ombros. E quando você desaparecer na última esquina, labirinto do nunca mais, só uma coisa me fará falta: as palavras de bem que antes desperdicei.
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*Pandora é a mulher criada por Zeus para castigar os homens pela ousadia de Prometeu em roubar o segredo do fogo. Zeus deu a Pandora uma caixa, cujo conteúdo era os males que passariam a atingir a humanidade: a velhice, o trabalho, a doença, a loucura, a mentira e a paixão. Só a esperança ficou no fundo da caixa.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A quem interessar possa...

1
Estou com medo de ser queimada viva, junto com o Yashá Gallazzi... Mas não posso deixar de dizer que gostei da crônica do Rogério Borges, aquele que agora todo o meio do mundo sabe quem é. É que quando me perguntam se nasci aqui, eu digo não. Quando me perguntam se sou daqui, eu digo sim. Pois são coisas diferentes. Nasci no Paraná, mas moro no Amapá há 24 anos e três meses. Amo o Amapá, se é necessário dizer, depois das declarações de amor pela Amazônia que tenho publicado em meus livros. E finalmente quando me perguntam se sou escritora, eu digo sou. Como escritora, percebo o valor literário do texto. E o valor do que o Rogério escreveu não está na ideia. Está nas letras. No incrível e delicioso encontro dos signos gráficos.
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2
Um amigo me disse: Mas quem é que gosta de ser alvo de piada? A loura? O português? O anão? Não concordo com a reação, mas compreendo a reação. A literatura é uma arte incompreendida. Cada vez mais solitária. Os livros que mais vendem não são necessariamente literatura.
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3
Rogério deve estar lambendo os dedos com o efeito que sua crônica causou. A finalidade óbvia de todo aquele que escreve é ser lido, e ele nunca deve ter sido tão lido antes disso. Eu, que dedico grande parte do meu tempo às maquinações da escrita, sei que é muito bom sentir o efeito que um texto causa, embora nem sempre ele seja escrito pra causar algum efeito.
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4
Claro que o Rogério foi muito mais lido no Amapá do que em Goiás. O amapaense, por sua reação, promoveu-o a grande cronista, articulista, jornalista. Por aí já o comparam a Diogo Mainardi. Quanta moral! Pressinto olheiros de grandes jornais do Brasil e do exterior já discutindo o valor de seu passe.
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5
Ouvi falar até de uma investigação da vida do jornalista por parte do Ministério Público do Amapá. Eu, se fosse o Rogério, aproveitava o embalo e emplacava um livro, um belo livro sobre o tema. Se depender dos amapaenses, rapidinho se torna um best seller. É pra isso que serve o ibope.
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terça-feira, 13 de abril de 2010

Ajay

Da série Pandora*
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Ajay colheu a paixão na caixa de Pandora
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Pra mim, ele era deus. E nada mais, porque nada podia ser mais. Amava-o desde a primeira escuridão até a última luz da vida, dono que era de toda minha honra, de toda minha glória, por todos os séculos e séculos. Meu Adonai, meu Elohim, meu Gibbor... amor de perdição, e salvação, e perdição, onipresente em meu tempo e destempo. Eu comia de sua carne e bebia de seu sangue, rendida ao sussurro de meu nome: Ajay... gozando ao milagre de sua palavra à beira de meu corpo. No paroxismo da paixão, desejava morar em seus olhos, para olhar o mundo pela perspectiva de deus. Nos desvarios da solidão, chamava os 72 nomes pronunciáveis de deus. Mas só era atendida no tempo escolhido por deus. Prisioneira da artimanha dos seus acasos, que quase nunca eram os meus, tive minha primeira crise de fé. Como compreender que tamanho amor passasse despercebido, oculto do escrutínio divino? Que meu deus me tivesse em conta de mera paisagem em seu fabuloso quebra-cabeça? Ele podia. Ele era deus. Imortal e devotado unicamente ao seu próprio ser. Incapaz do amor além do seu santo umbigo. Quem morria era eu, de inferno e sacrifício. E foi devagar que vi se apagar o sol lilás que seguia acima de sua figura. Agora sei que deus de verdade é aquele pássaro que jamais perde o azul do vôo. Sei que foi minha a criação do amor. Sei também que, por seu poder de amar, Ajay é invencível. Aquele que amei? Pra mim, ele é um pobre diabo.
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*Pandora é a mulher criada por Zeus para castigar os homens pela ousadia de Prometeu em roubar o segredo do fogo. Zeus deu a Pandora uma caixa, cujo conteúdo era os males que passariam a atingir a humanidade: a velhice, o trabalho, a doença, a loucura, a mentira e a paixão. Só a esperança ficou no fundo da caixa.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Abilash na Terra da Gente

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Olha aí o livro Abilash na revista Terra da Gente, em matéria enviada pela Escrituras Editora.
Terra da Gente tem tiragem mensal de 25 mil exemplares, com distribuição nacional, produzida pela Terra da Gente Produções, uma empresa do Grupo EPTV (TV Globo Campinas).

A autora está imensamente feliz com a publicação. Do livro e da matéria.



terça-feira, 30 de março de 2010

Pássaros de papel

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A lembrança é remota, como das coisas que se vivem em sonho. Mas lembro que atravessava o Largo da Ordem numa tarde de ventos em que os canteiros da Praça do Relógio explodiam em flores de primavera em pleno verão de Curitiba. Foi então que o anjo, que neste dia andava calado ao meu lado, me disse ao ouvido: “olha o poeta...” E olhei, e vi que daquela vez não era mais uma promessa que me fazia o anjo, que costumava caminhar com a mão entrelaçada à minha sob as paineiras.
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O poeta estava mesmo ali, ao alcance de minha crença pueril de que a poesia podia ser vista com os olhos. A despeito do tempo, continuo acreditando. Estava ali, Leminski, com a elegância de “um homem com uma dor” que ganhava o tempo de toda uma tarde comovendo-se com os pequenos pássaros de papel que os colegiais libertavam sobre os gramados.
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Estava ali, recolhendo versos do quadro da tarde, e como se nos “olhasse de dentro de um diamante”, sorriu ao nos ver passar, como passavam os pássaros de papel no vento. Ou porque tivéssemos os olhos de quem testemunhasse uma aparição cósmica. “Leminski...”, sussurramos eu e o anjo, naquele instante cristalizado no tempo, e depois apenas o vimos se ir, telúrico e quase marginal, caminhando “assim de lado”, levado pelo crepúsculo, com um pássaro de papel colhido na concha da mão.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ABILASH

Queridos amigos,

Apresento a vocês meu livro: Abilash – Conto da Amazônia, um pequeno filho, nascido muito tempo depois do nascimento do filho mais velho: Lugar da Chuva. Mas com a literatura é assim... passa-se tempo precioso escrevendo e tempo amargurado tentando publicar. E este momento, o de ter a nova criação nas mãos, o livro prontinho saído das máquinas que concretizam o sonho da palavra no papel, é ímpar, é singular. Pois Abilash está aí... foi publicado pela Editora Escrituras, tem 64 páginas e conta a história de um menino que renasce na Amazônia para plantar a semente da preservação e do amor à vida no coração do homem. Espero, com Abilash, reavivar a esperança no coração de todos os leitores. Um abraço.

Início do conto:


Inspirado no renascimento de Abilash.


Um menino de três meses foi resgatado dos tsunamis que flagelaram o Sri Lanka, na Ásia, no final do ano 2004. Nove casais que haviam perdido seus filhos disputaram sua paternidade. Depois do cataclismo, com o filho renascido nos braços, os pais verdadeiros o chamaram Abilash. Para os nove casais, ele foi o filho desejado.

Somente as águas do rio Amazonas assistiram naquela noite à chegada do menino. E estavam mansas como quem dorme, guardadas pelo clarão vigilante da lua sobre o rio. O menino estava nu, de olhos abertos, e do fundo de uma canoa embalada pela calmaria, fitava no céu as constelações cintilantes de dezembro.

Queridos amigos, comprem! Na Banca do Dorimar e na Livraria Transa Amazônica.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Ausência

Desculpe. É que deixei algo primordial perdido no destempo. Talvez o fio de minha meada. Talvez a voz, no ruído branco da multidão. O segredo de desvirtuar o tempo, no tempo que anda a minha espera. Venho inventando contradanças, estudando a origem incestuosa de Tutankamon, lendo poemas de Maiakovski que Maiakovski não escreveu. Não tenho visto mais que a dança dos cristais à flor da água, num horizonte rasgado em tiras, os rodeios da noite, borboletas noturnas que se escondem do dia. Não tenho ouvido mais que o sussurro de meu próprio cabelo em oscilações mínimas na pressão do ar, a medida da razão entre duas quantidades do caminho que traçam minhas unhas sobre a minha pele. Mas vejo a primavera chegando antes de seu tempo, a primavera parindo Zaratustra, ouço o riso de Zaratustra à margem do ventre... Trago nas mãos meu próprio coração. Ele ainda pulsa.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Origami

Da série Breves Contos
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Eu já havia composto cem origamis de guarda-chuvas quando ele percebeu que chovia. Disse então que eu compusesse mil origamis da garça de papel japonesa*, se desejasse ser dona do seu coração. Compus um dragão. Um dragão celestial que devorou o sol. E realizei o desejo ancestral de ser dona da chuva.
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*Segundo a cultura japonesa, aquele que fizer mil origamis da garça de papel japonesa terá um pedido realizado.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Dois Ponto Três Lisboa

tô sem ideia. sem vontade descrever. de nada. não tenho a mínima ideia do que virá a seguir. inércia é meu sobrenome. ando tão feio. tão sem assunto. me assusto. ninguém mais há em minha volta. tô cansado da minha companhia. só falo besteira. não digo nada com nada. preciso exercitar a pena. se ela se move que seja na minha mão. trêmula e bolorenta. mesmo que seja para ser mais um papel sujo. se isso fosse uma folha em branco, você podia desenhar, descansar a vista. ou escrever um bilhete suicida. mas eu passei primeiro e ... se você não se importar, rabisque por cima. por mim tanto faz. acho até que vou tomar um bagaço e ver no que dá. vou à torre de belém olhar o tejo. matar o tempo pra não me matar, esse é o meu nome. fiquei nos quartos dessa casa em benfica o dia todo, ouvindo rock, lendo história em quadrinho. boa noite. talvez alguém leia e curta isso aqui. tanto faz. embora tudo que mais quero nessa porca vida é te botar feliz. bagaço basta o meu e o da uva.

Chacal
Lisboa (1973)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Mundo cão

Vestiu-se de Maria, donzela desamparada, vestido de laço e flor no cabelo, para ver a Banda passar. Ninguém, nem o Batman, quando passou atrás do trio elétrico, alisando as flores do seu vestido com um olhar de sarjeta, suspeitou de que aquela era a identidade secreta da Mulher Gato.
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Do meio da profusão das marchas do carnaval, o Capitão Cachorro encontrou o olhar I believe in angels de Maria, donzela desamparada, e não soube jamais explicar por que, naquele instante ad infinitum, desejou ser o Negro Gato de arrepiar.
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O Negro Gato passou no meio da Banda, entre Frajolas e Manda-Chuvas... grisalho, quase calvo, hipnotizado pelo pó e pelo único trio elétrico que se rebelava em Racionais MC’ s. “Um cara que é da noite, da madrugada”, ele cantou, absorto, ao passar sem ver o olhar de fera livre que lhe lançava Maria, a donzela.
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De laço de fita e flor no cabelo, Maria, desamparada na terça-feira gorda, sentiu-se tentada a cair nos braços do Gato de Botas, de lhe dar seu sexo animal. Isto antes de perceber que em plena avenida ele já lambia a nudez translúcida de Lady Godiva – muito mais bela, embora bipolar.
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Naquele último dia de carnaval, quando a Banda passou de passar, Maria, donzela desamparada, arrematou a última cachaça de um ambulante perdido entre serpentinas e restos mortais de canções, e pensou em pensar sobre o mundo cão... que poderia ser salvo pelos gatos. Então sentiu o convite da garra pousando tigresa em seu ombro, e se virou devagar, para gozar lenta e felina o olhar daquele que lhe descobrira a identidade secreta.
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Segunda Carta

Da série Linhas Tortas
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Deus, desde o princípio da humanidade a gente vem procurando pelo Senhor. E até onde tenho notícias, nunca alguém o encontrou na forma esperada: a humana, pra que se pudesse ter uma conversa olho no olho, pra desfiar o imenso novelo de reclamações recíprocas. Desde que nasci tenho ouvido falar que o Senhor está em todas as coisas, de preferência nas boas e nas bonitas... meu último amor me disse que Deus era a primeira coisa que via ao acordar e abrir os olhos pela manhã. Achei muito bacana, mas ando pensando que isso é muito mais poesia do que verdade, embora acredite na poesia como a grande verdade. Em carta anterior, já lhe disse que o mundo anda paradoxal... não espere que eu não seja também.
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Compreendo a lógica de que a palavra é múltipla, o homem é múltiplo, e não espero que Deus, sendo maior que a palavra e que o homem, ficasse aprisionado numa única forma. O problema é que assim fica impossível reconhecê-lo, principalmente nos momentos em que mais se precisa, os de desespero, aqueles em que se fica cego de todos os sentidos e por isso se cometem mais desatinos.
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Num desses momentos, por exemplo, saí por aí a sua procura altas horas da noite... e não é que encontrei um de seus esconderijos? Com placa e letreiro na entrada: Esconderijo do Altíssimo, rua Diógenes Silva, numero tal. Vamos combinar, nem é assim tão longe da minha casa. Mas estava fechado. De lá pra cá tenho pensado sobre o que lhe direi quando voltar lá e o Senhor me atender. Algumas perguntas já estão preparadas e posso adiantá-las.
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Pergunta número um: O Senhor tem tido bons sonhos?
Pergunta número dois: O Senhor perdeu o endereço do Haiti?
Pergunta número três: Onde pretendeis alojar, em cima da hora, os 150 mil mortos do Haiti (se é que sabeis do que estou falando)?
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Sugiro que o Senhor comece a mostrar sua cara de forma mais clara, caso contrário, seu governo está com os dias contados. E sabe-se quem pode levar a próxima eleição...
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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

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Preparei este lugar para o nascimento das palavras. Elas estão em pleno parto. Um profeta deste princípio de era me disse que elas virão salamandras, teias, estrelas, veneno, abismo, voragem, flor, desordem, infinito... Mas que, sendo irmãs de alma e sangue, todas terão os traços do coração.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

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E como não haja mais nada a fazer, uma vez que dois mil e nove anos depois de Cristo ficaram para trás e nunca mais voltarão, entrei em estado de árvore. Contrariando a receita de Manoel de Barros, que diz que para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto, neste resto de dezembro, entrei. Já pressinto o pouso dos passarinhos-mariposas-borboletas. Estou em paz à sombra eventual das nuvens, esperando a chuva de galhos abertos, à mercê dos relâmpagos e temporais, ao sabor dos ventos e dos sóis, e com um desejo enorme de estender-me em doces sombras sobre quem vier, ainda que venha apenas para assistir ao estranho espetáculo do tempo devorando o tempo.
Estou em estado de árvore. Em 2010, bem antes da primavera, pretendo florescer!

Para quem vier enquanto eu não estiver:

"O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos."

Manoel de Barros - O Livro das Ignorãças

domingo, 6 de dezembro de 2009

Doce Delicadeza

Para os vinte e poucos anos de Aretha
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Na última madrugada, a chuva bateu na janela com a serenidade de que só é capaz a própria chuva, e perguntou: Aqui é Doce Delicadeza? De dentro da janela, com um sussurro recém-desperto, a moça respondeu: Sim, é aqui. Então a chuva pediu: Abre a janela... A moça abriu-a devagar para não ferir as faces da chuva, e as duas se olharam nos olhos por um instante ad infinitum. Foi quando a chuva, ainda mirando os olhos cristais da moça, disse: Como posso ter certeza? E a moça, com um sorriso ainda mais cristal que os olhos transcendendo a aurora vindoura, lhe abriu suas delicadas asas de papillon.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Divaganças


Uma revoada de folhas secas pode ser tão bonita quanto uma revoada de andorinhas.

Folhas secas, quando caem, se parecem com borboletas que voassem em espiral.

Borboletas têm vida mais curta que folhas. Folhas secas podem durar 10 anos.

Uma andorinha sozinha pode fazer qualquer estação.

As estações servem para mostrar que todas as coisas da natureza têm alma.

A alma do vento me possui no verão. No inverno entrego a minha à chuva.

A chuva tem poder curativo. Na manhã me cura a preguiça. Na tarde, meu calor. Na madrugada, a solidão.

Poucos seres no mundo são tão generosos quanto uma árvore.

Quem tem coragem para derrubar uma árvore tem também covardia para plantar concreto no lugar.

Olhar as coisas sem vê-las é como matá-las um pouco. Às vezes muito.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Esses dias...

Faz dias que nada penso, nada escrevo, nada prometo... culpa do Manoel de Barros, poeta e anjo, que me ensinou a voltar o ouvido para os conversamentos das pedras, os olhos para a anoitecência das mariposas e a alma para a poesia pantaneira das ignorãças.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Contradança II

Haja o que houver, há de chegar a chuva, branca, telúrica sobre minha nudez estendida ao chão e exposta ao céu rachado em tiras de fogo. Tenho o ouvido colado à terra, onde ouço Madredeus e os resquícios das vibrações do big bang. Mergulho no beijo inspirado em vodkas e mentiras infernais colhidas nas promessas do acaso. Acordo o desejo encostado em sombras, o desejo que pulsa na boca, antes da queda vertiginosa, irreversível, imprescindível, das alturas geológicas do tempo e dos abismos do corpo. Componho recados inócuos, bilhetes em hieroglifos, teorias do esquecimento que são lidas em meus olhos por olhos gris. Não volto para a ceia, não preciso da porta aberta, não acendo a luz da espera. Antevejo a doçura da chuva. Nasceram-me asas voltadas para o caminho do tempo crepuscular, onde o meu amor não tem mais dono. Talvez eu voe, talvez morra, talvez pouse no telhado junto aos gatos, até que a chuva, translúcida e também alada, me conceda uma contradança.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O nome das coisas

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A gente já sabia que as coisas têm nome, mas nunca tinha prestado atenção a quantas coisas as coisas têm, além do nome. Arnaldo Antunes então disse: As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz. E a gente passou a ver certas coisas com outros olhos, outros narizes e outras bocas.
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Vejam só quantas coisas tem a coisa janela, por exemplo. Tem tamanho, tem cor, tem lirismo e poesia. Nem posso imaginar outro nome para janela, ou outro nome para poesia. Aurora, então, é uma coisa que têm luz até no mome. Saudade, além de uma recôndita tristeza, tem reticências, tem extensão: que coisa comprida é a saudade...
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Sim, temos uma língua que batizou bem as coisas, embora haja coisas que ainda carecem de nome. Como se chama, por exemplo, aquela sensação que se tem na boca do estômago ao se lembrar de repente de algo que causou extrema emoção? Qual é o nome daquela valetinha situada logo abaixo da nuca de algumas pessoas – não de todas – que tem um cheiro intenso de feromônio? Como devo chamar a atitude de quem acha que pode arrancar folhinhas, colher uma florzinha daquela planta que nunca regou? Covardia? Não. Pensemos num nome menos eufêmico.
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Enfim, covardias à parte... Arnaldo Antunes é uma criatura doce. Ponto final.

sábado, 3 de outubro de 2009

Destempo

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Era a primeira vez em muitos anos que eu não via Florentino Ariza* sentado sob a acácia da praça, que eu não pensava em Florentino Ariza. A manhã havia parado de correr às 08 horas, cristalizada num tempo imóvel, no ar inerte, no súbito silêncio do trânsito e dos cachorros que suspenderam a travessia da faixa de pedestres para olhar em direção ao nada, pressentindo a imobilidade do tempo. O mendigo itinerante que naquele dia morava no canteiro ouviu a tristeza das raízes das papoulas sob a terra há dois meses sem chuva. Uma menina que viera de longe para assistir ao sol dos trópicos com sua pele amorim e sua sombrinha floral paralisou-se atenta ao céu, espremendo entre as pálpebras o azul juvenil das íris. Pelo tempo que durou o destempo. Passaram-se minutos que podem ter sido horas, que podem ter sido dias, meses, qualquer medida oficial de tempo, quando a manhã voltou a correr. Mas os relógios nos pulsos, nos bolsos, nos painéis ofuscados pela claridade das 08 horas marcavam ainda 08 horas. Foi quando os cachorros prosseguiram a travessia, o mendigo moveu o silêncio em direção à menina de sombrinha floral, que por sua vez apressou o passo atrás das borboletas que sobrevoavam as papoulas. Somente Florentino Ariza não voltou a aparecer sob a acácia. Foi necessário o destempo para apagar minha lembrança de Florentino Ariza.

*Personagem de Gabriel García Márquez em O amor nos tempos do cólera.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Frederich

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Na manhã em que seu navio voltou ao porto de origem, Frederich Spassky estava nas tabernas do cais, agarrado às putas que faziam alvoroço em torno de seus olhos azuis e de sua pele curtida pelo sol de muitos mares. Foi abandonado para sempre nestas terras estrangeiras. Primeiro se desesperou, teve vontade de se matar, depois se acostumou, e fez do novo porto sua pátria. Arrumou-se na vida, arranjou mulher, filhos e um barco pesqueiro, embora nunca tenha deixado de pensar na Rússia e em sua amada Narkissa. Não sabe quantos anos tem. Diz ter chegado a uma idade em que não se contam mais os anos, mas se continuam a descobrir muitas coisas. Descobriu, por exemplo, onde é o lugar mais longe do mundo: a terra estrangeira. Frederich circula pelo cais com a desenvoltura dos experientes marinheiros e ainda ajuda a alimentar o mercado clandestino de ervas. Numa noite de cantorias na praia, chegou-se à nossa roda vestido de branco e com um sorriso trazido da juventude. Pediu um pouco do vinho em troca de um poema e nos fez a alma ferver de êxtase quando recitou Maiakovski em russo. Ontem me disse ter sonhado que atravessava um mar de tulipas amarelas. Hoje se demorou mais em seu aceno quando me viu na janela. Fiquei triste olhando ao longe sua cabeça branquinha, acesa pelo sol do cais. Frederich Spassky sabe que está prestes a encontrar o navio que levará a todos a uma pátria única.

domingo, 20 de setembro de 2009

Das coisas de ser

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Então comecei a ser coisa. De passagem pelo setembro acanhado de incertimentos, carregava perguntas nas cordas das sandálias, preguiças penduradas nas pontas dos dedos, delicadências nas raízes dos pêlos. E a ilusão de que havia silêncio nas pedras. O vento me oferecia uma cadeira à sombra de violetas, e ali a morte vinha dizer que o tempo tem cor, zombando da minha descompetência para ver a cor que me teve a infância. Era assim que eu repetia os crepúsculos. Sintomas de solidão até a luz dos vaga-lumes. Do tempo que passo em estado de coisa, me acostumei a ser coisa... pedra gozando vento, pétala à flor da água, grão de areia brotando em vegetal, voz de grilo na trilha da noite. Quando me vier o anjo perverso que se ocupa em me esvaziar em desertos, me dirá mais uma vez que vou morrer na vigésima quinta hora mais oblíquos minutos. Não me causará mágoa porque agora me sinto coisa em minha postura e deseternidade. Poderá me encolher em desfolhamentos se assim eu for folhagem. Sendo pedra, lhe direi um sorriso mineral, varado de amanhecer. E pássaro em repouso, um olhar breve que se amansa em nuvens. Acostumei-me a ser coisa, e quando a nova manhã soprar a lufada de céu sobre meu rosto, quero apenas ser terra que germina outras coisas num dia inventado de azuis.

domingo, 6 de setembro de 2009

Diálogos impossíveis

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Aos domingos eu fuço gavetas. Nem sempre encontro o que quero, mas às vezes encontro coisas possíveis, como estes diálogos impossíveis, exercícios de um tempo improvável.

I
- O que você pensou antes de morrer, Ferdinand?
- Pensei na vida...
- Passou um filme?
- Sim... de toda a vida.
- Só acontece com os suicidas?
- Isso eu não sei...
- E se eu me matasse?
- Pra ver o filme?
- Sim.
- Me deixe quieto!

II
- Se você queria me impressionar...
- Desculpe...
- Não devia ter ficado reparando...
- Eu já disse desculpe...
- No meu modo de comer.
- Mas eu percebo a velocidade de tudo...
- Ah...
- E você come a 360 quilômetros por hora.
- Fala sério!
- É científico. Você devia saber...
- Pra mim chega!
- Que um estudante de Física tem esses vícios.
- Eu vou embora...
- Ah, fica... você é tão inteligente, tão oculta...
- Tchau!

III
- Querido, o que quer dizer intermitência?
- É quando uma coisa só acontece em intervalos.
- Grandes intervalos?
- Pode ser.
- Como o sexo?
- Que sexo...?
- Da gente...
- Que livro é esse que você tá lendo?
- As Intermitências da Morte.
- Por que você não vai ler outra coisa?

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Minha vida com Johnny

Cansei da vida ao lado de Johnny Depp. Estou decidida a abandoná-lo. Sentirei falta de passar seus ternos risca de giz, de escovar seus chapéus, de lhe dar banho quando acorda triste porque Tim Burton não telefona há dias. Terei saudade de quando me arrebata em pleno canteiro de samambaias, implorando que o chame de Don Juan de Marco, mas não posso mais suportar suas crises de identidade, as ocasiões em que exige carnes sangrentas na mesa do almoço, rum na hora do chá, em que sai à rua com os cabelos desgrenhados e uns terríveis olhos contornados de preto, dizendo agora tragam-me o horizonte. Nestes dias, se não o chamo de Jack Sparrow ele não atende. É um excêntrico galante, riem com simpatia os bajuladores. É um exibicionista ordinário, penso, convicta. Mas lhe sou grata por nunca ter acordado com crise de mãos de tesoura.
Não fiz segredo de que como Chapeleiro Maluco ele está a cara do Elijah Wood, e desde este episódio resolveu me dar o troco, como se eu fosse a culpada: comprou um corcel 74, azul piscina, equipado com potentíssimo equipamento de som, que anda exibindo de porta-malas aberto na frente dos bares onde estão meus amigos. Compreendo sua estratégia, mas respeito mais a minha. Digo-lhe você só me faz vergonha, Johnny Depp, e ele vai dormir como um menino, se sentindo vingado.
Hoje atravessou o dia desejando matar o Gato de Cheschire, de quem morre de ciúmes. Diz que não pode mais tolerar o riso do felino, e mal percebe que não posso mais tolerar seus desmandos. Jamais lhe darei a chance de me dizer primeiro nós dois nunca teríamos dado certo, mas receio que o abandono lhe atrapalhe a estreia de Alice... Antes isso, porém, do que amanhecer qualquer dia como uma noiva cadáver.


domingo, 23 de agosto de 2009

Tsarphatah

Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento. - Clarice Lispector


Esta tarde sonhei com os pães de Bete, a viúva de Sarepta que nunca ficou sem farinha e sem azeite. E quando havia apenas um pouco de farinha numa panela e um pouco de azeite, Bete multiplicava pães que depois distribuía com generosidade a quem fosse a Tsarphatah. Tenho voltado lá sempre, e tenho encontrado o forno apagado. Na porta de Tsarphatah a mensagem resoluta de adeus.

Esta tarde sonhei com os pães de Bete. Era Márcia quem estava em minha cozinha fazendo a mistura da massa, e depois me mostrava sorrindo o pão redondo como uma lua que aprendera a fazer com Bete. Vamos multiplica-los, e embrulha-los em papel de seda, dizia Márcia, iluminada pela presença de Elias, o profeta das viúvas, que nunca deixou Bete só.

Não posso compreender a ausência de Bete, porque nunca pude compreender minha própria fome. Tenho precisado do pão que a viúva de Sarepta preparava. Do braço de Deus estendido sobre a minha cabeça. Da palavra do Messias que falava com Elizabeth enfatizando a letra i de seu nome, como em inglês.

Acordei com saudades de Bete, e meu desamparo foi maior quando bati nas cinco portas de Madame Poison e ela não abriu nenhuma pra eu ver se havia algum pão.

Bete disse um dia que a própria bíblia não dá conta de como termina a história da viúva de Sarepta. Quanto a mim, não posso voltar a dormir em paz sem uma resposta. Bete encontrou uma explicação para a vida?

sábado, 15 de agosto de 2009

Eu no Woodstock

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Se em 1969 eu tivesse uns 20 anos, seguramente teria ido ao Festival de Woodstock. Ainda que pra isso eu precisasse antes passar meses vendendo coxinha, lavando roupa pra fora ou entregando leite nos portões da madrugada, nas ruazinhas esmigalhadas de solidão de minha cidade perdida nos pinhais do Paraná. E ainda que isso só servisse para a passagem de ida.

Por isso acho que nasci na época errada. Se tivesse nascido pelos anos 50, não teria sido necessariamente hippie, mas também não teria perdido a oportunidade de usar saias e cabelos imensos, ou de criar meus filhos como índios, ou ainda andar por aí mostrando pra todo mundo aqueles dois dedinhos mágicos dizendo paz e amor... e de ter ido ao Woodstock, é claro.

Mas não é só isso, que o meu desejo não é tão superficial. Se tivesse nascido nos anos 50, poderia até ser chamada hoje de dinossauro por minhas filhas ultra-jovens, mas não tenho dúvidas de que seria um dinossauro libertário, que traria no sangue, no olhar e nas atitudes a essência do movimento hippie, pois sua essência perdura, a despeito da morte dos saiões, dos cabelões e de todos os símbolos exteriores consumíveis.

Eu sei, eu sei. Não é preciso ter nascido hippie ou ter ido ao Woodstock para se ter ideias libertárias. Mas naquela época era mais original, reconhecia-se um libertário pela roupa, pelo cabelo, pelos olhos, pelo vocabulário... hoje até o mais genial marginal criativo é confundido com o conservador burguês, etcétera e tal, esse papo está ficando caretão.

Se eu pudesse ter engrossado os coros contra o consumismo, contra as guerras e pelo amor, e depois disso ainda ter rolado na lama do Woodstock, dormido no campo do Woodstock, visto luas brotarem das poças d´água do Woodstock e ainda acordado em plena segunda-feira ouvindo Jimi Hendrix no Woodstock... ai, ai. Quem me conhece, não se iluda com uns certos modos clássicos de minha aparência. Aqui dentro existe uma criatura derrubando cercas e vivendo overdoses de chuva no Woodstock.

Eu não vivi o movimento hippie nem fui ao lendário festival, mas como consolo ao meu sonho frustrado e ao calor tempestuoso da noite, quero deixar claro que continuo fazendo o amor e não a guerra, que tenho sobrevivido a toda forma de autoritarismo, combatendo o meu próprio e descobrindo o amor libertário. Ave, Roberto Freire!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ballet

Para Aline
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Deito-me na laje morna junto aos gatos que há horas se entregam lânguidos às próprias línguas. Os fios de luz do crepúsculo escorrem translúcidos sobre os telhados. No quarto fechado, a pequena bailarina ouve Chopin e dança de sapatilha de ponta o seu petit ballet, sem importar-se que umas notas fugitivas do piano escapem por debaixo da porta e venham refugiar-se junto aos gatos. A este sinal, asas brancas dançam nas lonjuras azuis, nuvens dançam fluidas na atmosfera rosada, jovens folhas dançam coladas aos corpos das árvores, enquanto as velhas folhas rodopiam soltas com a brisa. A bailarina vem para a laje, onde há liberdade para o seu grand jeté, deixando Chopin vivo no quarto. Abraço um dos gatos, e num rompante de ternura, penso dançar com aquele cego que não podia ver a primavera em Paris.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Túnel do tempo

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Acreditem: levei 30 anos para aprender a letra de uma das canções que mais me encantaram quando eu era uma pré-moça. Se por aqueles dias alguém com poderes para previsões tivesse me dito você vai saber cantar esta música... daqui a 30 anos, eu teria tido um arrebatamento, uma síncope, uma crise existencial. Como é que eu ia saber o que eram 30 anos adiante? Era a mesma noção que eu teria hoje de 300.

Testei isto em minha filha mais nova, minha pequena bailarina, quando ela pediu pela trigésima vez sua sonhada sapatilha de ponta. Você vai ganhar... daqui a 30 anos! E fiquei esperando a reação. Foi de total descrédito. Os adolescentes não acreditam em nada do que a gente diz... mas fazem menos dramas.

Pois quem imaginaria? Aprender aquela música foi um dos meus maiores desejos, quando meu acesso aos discos, aos aparelhos eletrônicos, à sintonia das rádios era difícil.

30 anos, e assim, quase do nada, pesquisando umas coisas nas veredas do google, me encontro com ela, clara, transparente, com todas aquelas mágicas palavras que fizeram o encanto dos meus 13 anos: a letra. Embora na época eu não percebesse, já era a letra que primeiro me chamava a atenção.

O tempo brinca mesmo com a cara da gente. Literalmente, inclusive. Durante os 30 anos eu não procurei pela canção, embora esporadicamente me lembrasse dela, e nunca mais a ouvi em lugar nenhum. Eu podia ter aproveitado um milésimo desse tempo para procurá-la e provavelmente a teria encontrado, uma vez que eu sempre soube quem é o compositor. Mas o tempo sempre me desviou para outras viagens, outras ideias, outras canções.

Eu devia saber que ela havia de me chegar um dia. Estava escrito. Não preciso dizer que agora a tenho cantado diariamente, envolta numa espécie de espiral do túnel do tempo.

Não esperem que eu diga de que música se trata. Desnecessário. O encanto está no sentido que o tempo lhe deu, no que ela representa para minha vida. Se fosse possível cantá-la pelo blog, então eu a cantaria.

sábado, 1 de agosto de 2009

Despertar em agosto

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Acordei em agosto com desejos incendiários! Ateei fogo às más lembranças, aos sapatos que dão calo, ao vestido que não cabe mais porque o corpo resolveu engordar a revelia. Incendiei o antigo bilhete que conservava sobre a mesa, cujas letras diziam até qualquer dia. Toquei fogo na teoria do acaso, pra não mais aceitar o destino passivamente. Na dúvida, na indiferença, nos farelos de vagabundo que resistiam no lençol. Hoje queimei de minha vida toda forma de pobreza e tudo o que escraviza o ser. A burrice, as máscaras, o paradoxo, o medo da dor. Talvez mais tarde eu queime fogos. Mas agora vou por aí, assobiando uma valsa de Maurice Ravel.

domingo, 26 de julho de 2009

Souvenir


Tonico come formigas e diz que elas têm sal. Diz que toda vez que vê um dinossauro tem vontade de pega-lo. Eu escrevo e armo no papel meu pequeno tabuleiro de palavras-souvenirs e lhe pergunto aonde viu um dinossauro. Ele aponta em inúmeras direções o dedo pintado de tinta óleo azul. Inclusive o cirro mais alto da tarde, um rabinho de cavalo. O tabuleiro está pronto... Lírico, trepidante, libertino, platiplanto, entre outras palavras que vão dar no sem fim. Pergunto a Tonico se ele sabe fazer avião. Não. Quer aprender? Não. E fica olhando de perto minha imperícia em dobrar papel. Demoro, para ganhar importância. Quando enfim lanço em vôo as palavras-souvenirs, vejo os olhos encantados de Tonico, que refletem um pequeno avião de papel sobrevoando um dinossauro.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Esperando agosto

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Eu era bem menina quando me ensinaram que agosto era mês de cachorro louco. Fazia sentido: no lugar onde eu morava, nos confins do Paraná, o clima de agosto era propício à proliferação do vírus da raiva canina. Cachorro louco era coisa comum por lá, de forma que cresci com este agosto estigmatizado na ideia. Além de mês de cachorro louco, era o mês da bruxa solta, do azar desgovernado e uma série de outras crenças.

Pelo mundo inteiro agosto é uma ameaça porque historicamente coisas terríveis aconteceram neste mês, gerando paranoias universais. Mas no balanço geral, acredito que outras coisas não menos terríveis aconteceram em outros meses e nem por isso se teme outros meses.

Foi em agosto que as cidades de Hiroshima e Nagazaki foram destruídas pelas bombas atômicas, foi em agosto que Hitler assumiu o governo alemão e começou a fazer o diabo, que Nelson Mandela foi preso, que se iniciou a construção do muro de Berlim, que Elvis Presley, Marilyn Monroe, Trotski, Nietzche e a princesa Diana morreram, que nasceu Bill Clinton...

Em compensação, foi em agosto que nasceram Herman Melville, Louis Armstrong, Alfred Hitchcock, Jorge Amado, Tolstoi e a Madre Teresa de Calcutá. Se isto não é suficiente para demonstrar que agosto é um mês injustiçado, foi em agosto que se iniciou o Festival de Woodstock, do qual eu poderia ter participado se não morasse nos confins do Paraná e se não tivesse três anos de idade. Mas este desejo é assunto pra outro dia.

Agosto só se tornou agosto em homenagem ao imperador romano César Augusto, que não queria ficar por baixo do imperador Júlio César, que por sua vez já era dono do mês de julho. E como julho tem 31 dias, César Augusto bateu o pezinho e disse: eu também quero! Por isso agosto também é de 31. Antes desta crise de frescura, agosto se chamava Sextil.

Pra quem não sabe – e eu também não sabia até hoje, parte do medo do brasileiro do mês de agosto foi herdada de Portugal. Como a época era a melhor para o início das navegações, em Portugal mulher nenhuma queria casar em agosto, porque o marido ia embora pro mar e em muitos casos nunca mais voltava. Morria afogado, se arranjava com outra em outro porto, etc... É por isso que no Brasil se diz que casar em agosto traz desgosto. Agora, não lavar a cabeça no mês de agosto, porque disque isso chama a morte, é coisa de argentino.

Portanto, prefiro esperar agosto como quem gosta da vida, e não como quem espera uma chuva ácida.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Querido pai

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Meu pai tem nome de poeta: Casemiro... Nasceu no Rio Grande do Sul, na década de 1930, mas não chegou a antenar-se nunca na efervescência cultural da época, na revolução industrial, na nova poesia modernista, nos romances regionalistas, na popularização dos automóveis e etcétera. Morava nos mais longínquos rincões gaúchos e precisava plantar e criar o que ia comer. Mas ouvia rádio nas altas oito horas da noite, cansado de roça, espiando pela janela a cadência das estrelas sobre o matão e com a cama já preparada para dormir. O arado à espera para a madrugada do outro dia.

Por isso sei que os ouvidos de meu pai foram educados pela mais pura música sertaneja de raiz, aquela que cantavam Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho... Aquela mesma que ele teimava em continuar ouvindo em discos antigos quando eu já era adolescente e morria de rir de seu gosto pré-histórico.

Um dia, muito tempo depois – eu já era bem adulta – surpreendi meu pai encantado com uma música que eu costumava ouvir nas ocasiões em que tentava desvendar o que fazer para unir o fio das minhas saudades à presença real do objeto de minhas saudades... Era Louis Armstrong cantando What a wonderful world.

Ontem entrei no supermercado no justo momento em que no sistema de som ambiente Louis Armstrong começava: I see trees of green, red roses too/ I see them bloom for me and you/And I think to myself/what a wonderful world... A música de meu pai, pensei, e então de repente me lembrei que era o dia de seu aniversário. 13 de julho. Seu Casemiro estava fazendo 74 anos.

Deixei lá na cestinha o pacote de arroz com brócolis que fui comprar. Saí do supermercado para chorar de saudade de meu pai no meio do sol de meio-dia, pois já era tempo de arrepender-me das tantas vezes que zombei do sertanejo que havia em sua alma, as mesmas vezes em que ele desligou o disco de suas poucas manhãs de folga somente para me agradar.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Semeadores de utopias

Estou começando hoje a compor uma lista de nomes que tiveram e têm relevância nas lutas pela preservação do meio ambiente em todos os tempos. São os semeadores de utopias ligadas à natureza. Gostaria de receber sua contribuição. Acrescente, belos olhos e doce coração que me lê, um nome a esta lista que até agora está ssim:
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Chico Mendes, Liev Tolstói, Buda, Dorothy Stang, Bacon, Rousseau, Aristóteles, Virgílio, Fernando Gabeira, Marina Silva, Mary Allegretti, Antônio Alves,Vandana Shiva, Brundtland, Muir, Carson, Darwin, Thiago de Mello, João Alberto Capiberibe, Christiane Torloni, Lovelock, São Francisco de Assis, Marx, Mahatma Gandhi, Heidegger, Betinho, McKibben, Al Gore, Júlio Roberto, Tom Jobim...
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Muito obrigada. A razão eu conto depois!

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Meninos de julho

Do livro Lugar da Chuva
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Em caminhadas crepusculares pelas ruas da cidade, pergunto-me por onde estarão perdidos neste setembro aqueles meninos que soltam pipas em julho. Vi um deles passando ali pela esquina entre as avenidas Rio Pedreira e Rio Tocantins. Sobre sua cabeça havia mil bolhas imaginárias ocupadas pelas maquinações da infância, bicicletas voadoras, sapatos com imensas molas propulsoras, asas de papelão, o sonho pré-histórico de voar alimentado pelo homem... Ia cabisbaixo, esperando julho chegar. Um outro atravessava distraído a monotonia da praça Chico Noé. Talvez pensasse em como seria bom se, em vez de empinarem pipas, pipas empinassem meninos. Os outros, não sei por onde andam, neste setembro vazio de meninos nas ruas, quando os jambeiros da General Rondom derramam flores nas calçadas e as mangueiras da Leopoldo Machado repousam até abril.
Os meninos de julho amanhecem colorindo com pipas o céu às margens do Amazonas dourado, cujas águas ondulam desde o princípio do mundo. Circundam a secular Fortaleza de São José de Macapá, onde dormem os negros que a construíram, iluminados pelo sol menino que penetra as paredes de pedra. Correm incansáveis e descalços no sedimento da praia, até que se acendam as luzes do trapiche, até que julho termine.
Agora que o menino está sonhando, Macapá sente a falta de pipas cruzando o céu, transportando o sonho de voar do menino.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Considerações sobre o nada

A formiga adivinha a linha que leio no centro da página e percorre as letras em disparada, até a palavra poeira. O que quer me dizer? Pra sacudir a poeira? Pra deixar a poeira sentar? Formiguinha infame! No mínimo, levantou minhas poeiras passadas. Se pelo menos tivesse parado na palavra acordeão, telúrica, ou vento... Como se quisesse desculpar-se, ou responder às minhas indefinições, ela corre para o meio da linha seguinte e fica descansando sobre a palavra nada. Fecho o livro? Ou a deixo continuar provocando minha incrível disposição para os pensamentos inúteis em plena manhã de segunda-feira?

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Aventura

Às vezes acho Macapá uma cidade estranha. Noutras tenho certeza. Meus leitores daqui me compreendem. Os demais devem limitar-se a visualizar a situação, e jamais pensar que Macapá é o fim do mundo. Só a quem é daqui ou mora aqui há 23 anos é permitido pensar isso. E a gente aproveita esse privilégio pra pensar coisas bem piores.

Resolvi me aventurar no domingo à noite em busca de um hambúrguer. A pé, porque calculei que a barraca da esquina estaria à minha espera. Não estava. Sempre em frente, como o Legião – e evitando a direção da beira do rio, onde a metade da população passeia, come churros e corre atrás de crianças tresloucadas no domingão – andei quase um quilômetro sem encontrar o hambúrguer. Um cheese banana, então, nem pensar.

Costumo pensar muito quando caminho – tem gente que fala sozinha, chuta pedras, apedreja cachorros – e ia pensando em como é interessante que sejam as perguntas, e não as respostas, que movem o mundo, quando dobrei a esquina da Padre Júlio com a Tiradentes e dei de cara com uma multidão parada na calçada. Assim, depois do nada. Uma multidão.

Eu não sei o que aquela gente toda estava fazendo ali, imagino que esperando por uns 15 ônibus, mas nem é isso o que me interessa. Foi o susto de ser engolida por uma multidão que olhava na direção contrária o que me fez sentir meio perdida, com a sensação de estar numa cena do Expresso da Meia Noite, ou de ser observada por todos: pelo rapaz que cantava eu vou fazer um ie-ie-iê romântico, pela grávida escorada no poste, pela mulher que assustava o filho dizendo que lá vinha o homem do saco (embora todo homem tenha).

Passei, e nada do sanduíche. Pra resumir, depois de dar mil voltas, encontrei uma barraca numa praça erma, a da Conceição... não porque seja distante, mas porque a falta de iluminação e o mato crescido a tornam desolada. Sua única beleza hoje é ter hambúrgueres para quem tem fome.

Voltei comendo o sanduíche pela rua, evitando pontos de ônibus com multidões, esquinas escuras – nunca se sabe onde se vai dar de cara com o homem do saco – e pra minha surpresa, ao dobrar outra esquina, fui surpreendida com a boca cheia de sanduíche por uns 30 fiéis da Comunidade Cristã de Macapá (pertinho da casa do falecido Brow), que tentaram me arrastar para aceitar Jesus.

Eu aceito, eu aceito! Mas primeiro me deixem terminar de comer, disse a eles, e em sua primeira distração, empreendi a fuga. No próximo domingo à noite, vou ficar em casa, vou comer as sobras do almoço. Se tiver.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Madrigal da manhã

Da série Breves Contos
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Atravesso a cavalo por entre os tanques de guerra encalhados em trilhas de sangue sobre o asfalto, deixando para trás o rio que corre em pororocas para o mar, arrebatando ilhas e submetendo árvores. Os abrigos subterrâneos esquecidos foram tomados pelas raízes das mangueiras apedrejadas desde a criação e pelas garrafas vazias que percorreram bueiros em busca do rio que procura o mar. Procuro a montanha que em verdade não há, porque não posso conter o galope. Nas ruas, rebeldes disfarçados de piratas enforcam animais de pelúcia e saqueiam os corações das mulheres. Mágicos trajados de soldados da paz arrancam dos quepes pombos macambúzios que se abalam rumo à montanha que não há, surpreendendo os mendigos que seguram rosas entre os dentes devastados. Nos salões, os generais dançam tango, embrulhando sua nudez em toalhas de linho, calçados com os scarpins das mulheres, enquanto os cães urinam nos mocassins e devoram na mesa o banquete intocado. Estendido numa calçada, um exemplar do Le Monde exibe a fotografia dos hipopótamos mortos pelo antraz que apodrecem nas ruas em Uganda. A manchete diz que a África não possui dólares suficientes para enterrar os cadáveres. Soterrado pela animalidade, salto do galope com destino ao limbo, derradeiro abrigo, onde poderei ser pós-humano. Acordo às seis, pensando em Gerineldo, que um dia percebeu o vazio da guerra e foi envelhecer na varanda, olhando a chuva.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O leite derramado

Ainda ontem, quando vi dois mergulhões viajando em direção às ilhas - embora todos os dias eu veja - percebi que janeiro, fevereiro, março, abril e - pasmem - maio já ficaram para trás. É que os mergulhões batiam as asas de um modo indiferente, como se achassem que em junho não há poesia. Não brincavam no ar rosado da tarde no rio Amazonas, como faziam até o mês anterior: simplesmente voavam para as ilhas, consumando o tempo.
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Perdoem-me pelo simplismo de começar falando em passarinho... é que não encontrei nada mais leve que o vôo de dois pares de asas para dizer que a carga de quase seis meses mal vividos está esmigalhando minhas pobres costelas. Quando me dei conta de que estamos em junho, tive vontade de olhar nos olhos de cada caminhante do parque e perguntar em franco desespero: você acredita?
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É tarde para colher a esperança fresca do novo janeiro, para esbaldar-se nas alegrias de fevereiro, ainda que tudo acabasse na quarta-feira. É tarde para amansar o coração sob as chuvas de março, para tomar um dos navios que partiram em abril levando cães clandestinos e amores extraviados, ou ainda ver os anjos dançando cirandas em torno de Maria em maio... é tarde.
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Mas ainda dá tempo de colher mansas chuvas que estendem desertos na madrugada, de ler o Leite Derramado, do Chico Buarque, sem chorar o leite derramado. Dá tempo de dobrar uma esquina e dar de cara com a primavera que virá, trazendo quem sabe o aviso de um novo amor em seus ventos de rio, tempo para ouvir os sonhos de Júlia, o riso de Olívia, as canções pacifistas de Bob Marley. De confiar na reconciliação entre os povos e descobrir que "é preciso não se recusar à vida", antes que a morte, entre outras tantas coisas...
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E antes que os meses vindouros comecem a pesar também sobre os ombros, voltemos a falar em passarinho... há um bem-te-vi me esperando no galho encostado em minha janela.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Ágata

Da série Breves Contos

O corpo veludo pérola do oriente se levanta leve, entre a intenção e o bocejo, no dia líquido de céu turquesa. Ela anda em direção à esquina, e os olhos verde jade, lânguidos da tarde entregue à preguiça, lambem o colar de topázio azul da vitrine. Perde-se parada a sustentar o desejo na língua quartzo rosa, envolta na brisa do mar esmeralda, e se volta à melodia do canto que chega do jardim de pássaros safira. É o fim do crepúsculo opala quando atravessa de volta entre os transeuntes que fogem do anoitecer que se prenuncia em granada castanho. Na sala, abandona-se aos dedos decorados em água-marinha que lhe enfeitam o pescoço com o pingente de ametista, e como em passos de petit ballet, salta felina para o telhado a miar para as estrelas diamantes que cintilam no ônix da noite.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Esses dias...

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Faz dias que nada penso, nada escrevo, nada prometo... Culpa de Thiago de Mello, poeta e louco, que me ensinou a brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

I

Escrevi uma pequena série que não pretende se enquadrar em nenhuma forma literária – nem conto, nem crônica. São apenas textos que fluíram do desejo de dizer... Dei à série o nome de Linhas Tortas.


Deus, não espero que a esta carta o senhor responda formalmente, já que não me respondeu a tantas outras. Mas espero por um sinal. Se o senhor se aborrecer, pode responder com um temporal que arranque as telhas da minha casa, por exemplo. Antes assim do que me deixar pensando que para o senhor eu sou apenas uma bolha n´água.
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Estou lhe escrevendo para dizer que acho que o senhor dorme, sim. Ao contrário do que dizem os pára-choques dos caminhões, que Deus não dorme. E acho inclusive que o senhor anda dormindo de touca, perdendo a boca e fugindo da briga, senão como é possível explicar essa vida tão torta?
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Eu sou um cara simples, que até pra escrever precisa da ajuda dos poetas, de quem vive tomando versos por empréstimo. E pra não parecer leviano poderia enumerar razões para a certeza de que o senhor dorme, mas esta é tão grave que deve ser suficiente... olha: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
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Percebe o tamanho do desencontro? É a maior das catástrofes humanas. Se Lúcifer tivesse vencido a revolução contra o senhor, talvez tivesse administrado as coisas de modo mais simples: João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim e Lili se amariam uns aos outros, e viveriam em recíproca e constante entrega de seus corpos e almas, sem que isso representasse uma vergonha. E seriam todos felizes. Não vamos nos enganar.... Lúcifer é um libertário!
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Eu não queria parecer vago nem obtuso, mas o mundo sob o seu comando anda muito paradoxal. Em quem eu devo acreditar enquanto o senhor dorme? No sujeito que disse que existe muito mais inferno entre o céu e a filosofia do que possa supor meu vão mistério? Em que eu devo pensar enquanto espero providências: no poder da olfação dos gnus? Na migração sazonal das borboletas amarelas?
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Lili continua sem amar ninguém, e eu me despeço sem pedir desculpas, porque não sou do tipo que morre de medo quando o pau quebra, embora haja quem diga que eu não sei de nada e que eu não sou de nada. Assino embaixo tudo o que disse. As outras dúvidas que possuo ficam para a próxima carta, que o senhor poderá ler quando acordar. Se...

sábado, 9 de maio de 2009

Presente

Continho para minha mãe

Nas noites mais escuras, sem lampiões nas esquinas castigadas de poeira, extintos já os vaga-lumes na paisagem calcinada pelo sol da eras, sentávamo-nos à beira da rua, nossa mãe apagava a única lamparina da casa e pedia que fechássemos os olhos para ouvir as histórias que ludibriavam nossas dores antigas, nossa fome hereditária e o sono milenar de deus que nos eternizara no esquecimento, até que chegava o momento mágico em que ela nos dava o sinal para abrir os olhos, e então emergíamos da escuridão e dos abismos de toda a vida, para receber, por suas mãos iluminadas, o fabuloso presente do acender da lua.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Divaganças e desesperações

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Tenho um amigo que anda pensativo sobre o destino humano, sobre o que somos e o que estará reservado a quem tem, por uma vida inteira, se dedicado a errâncias. Graças a Deus é só um. Nas ocasiões em que o encontro me sinto tentada a lhe dizer, com toda a crueza que tenho aprendido comigo mesma, o que penso sobre a epígrafe de um livro do Saramago – As Intermitências da Morte – que diz: saberemos cada vez menos o que é um ser humano. Mas tenho medo que lhe soe como uma terrível e invencível verdade. E que isto lhe mate o resto de esperança de descobrir de repente que somos qualquer coisa que o Céu aproveite mais tarde.

Prefiro continuar a vê-lo com o olhar perdido para as lonjuras do rio Amazonas, e ouvi-lo dizer as estranhezas permitidas a quem está chegando aos sessenta. Eu respeito sua cabeça branca. Outro dia me disse, com os olhos rútilos mirando o copo de cerveja: semana que vem vou passar 14 dias sem beber. Aperto-lhe a mão e lhe digo: Claro, eu compreendo como será comprida sua semana. Ele não entende. Está outra vez pensando na singular finalidade de nossa existência e importância no cosmos, se todos os seres vieram dos seres do mar, pra onde irão os bons e os bobos, os maus e os malas, etc. Eu penso no meu último desejo para o dia do juízo: lasanha de espinafre, que isso sim vale a pena.

Eu não mato suas esperanças, mas também não as alimento. Ando impressionada com a constatação de que o ser humano não muda, apesar da determinação científica de que a evolução nunca cessa. No futuro não teremos pelos no corpo... E daí, se estamos cultivando na alma monstros cada vez mais peludos e perversos que se expressam em nossas desumanidades diárias? Não. Não sou dada a obviedades existenciais. Já vou parar.

Depois de sua insólita promessa, meu amigo disse que não está contente consigo, que quer mudar, a burrice e a truculência com que tem se defrontado têm-no levado a repensar suas atitudes. E como tenha captado em meus olhos uma expressão de ceticismo nada sutil, arrematou: Ei, Lulih... eu estou mudando devagar. Reciclagem é fácil numa lata. Eu sou um ser humano. Foi a minha vez de estender os olhos para as lonjuras do rio. E meio envergonhada de minha própria desesperança, me limitei a divagar: por que todos os barcos são brancos?