terça-feira, 31 de julho de 2007

Pegasus
Pegasus foi como o chamei. Tinha o cavalo alado tatuado no braço. Na primeira vez que o vi, conduzia um carro molhado que deslizava no asfalto veloz. Do alto da janela, e com os olhos respingados, eu reconhecia a bênção da chuva que viera encharcar os gramados do casarão. Na outra vez, era uma outra chuva, e eu continuava na janela. O carro passou manso e Pegasus acenou. Na terceira vez parou, desceu e esperou que eu fosse ao seu encontro. “Você mora na janela?”, perguntou de longe, o braço nu mostrando as asas surreais do cavalo. Eu lhe disse que sim, que minha alma morava. “Eu vou levar você daí”, disse ele, e seu olhar tinha a promessa de uma constelação boreal ao Norte do Aquário e ao Sul de Andrômeda. E eu lhe respondi que iria com ele, desde que fosse presa às suas grandes asas. Ele riu, com a inocência de quem compreende o impossível. No outro dia, passou voando rente à janela onde eu ficava, transmutado em Pegasus, as asas brancas reverberando ao sol tímido de um janeiro de chuvas. Foi a última vez que o vi. Diante do meu assombro e da minha recusa, voou sozinho, rompendo nimbos de chumbo pela tarde transcendental

quarta-feira, 25 de julho de 2007

O gato

Dorme o gato na terra seca e morna, sob a árvore carregada de tangerinas. Pressente a chuva fiel a toda tarde, e abre uma fresta de olho para as nuvens que vêm cobrir os raios de luz que vazam pelos galhos. Chamo-o por duas, três vezes, e ele me olha sereno, mas não se demora muito a voltar ao fundo de sua introspecção. Olhos amarelos, peito branco, capinha e máscara pretas. Zorro! Herói à antiga. Corpinho esquálido de gato de rua, boêmio e imensamente sábio. Quase sempre me ouve e com afagos me consola das minhas confusões e perplexidades. Aproveito seu instante de imóvel contemplação das folhas que se movem fluidas em torno de si, e vejo as horas nos seus olhos, como faria um chinês. Dezessete. Logo virá a noite, e com ela, ele me deixará no paroxismo do abandono. Como se adormece um sonho, gato? Pergunto-lhe do fundo de minha rede. Ele se levanta enigmático, se espreguiça, salta sobre a cerca estreita, onde exibe o talento equilibrista, e se afasta lento, ignorando sem a menor piedade o meu apelo. Tu não queres saber, gato, sobre os meus desatinos? Nau, nau, nau... sai ele dizendo caminho afora, rumo ao terreno baldio, onde poderá matar pequenos calangos sem o meu incômodo apego à sua companhia. E eu penso que ele me diz não, não, não... Nau, nau, nau, ele repete, já do outro lado do cercado, e enfim o compreendo: Eu também quero uma nau, gato. Uma nau para transpor o imenso oceano que é o vazio dessa vida. Ele nem se volta, o ingrato.

domingo, 22 de julho de 2007

Madrugada
Fechemos a porta. Não vê que lá fora a madrugada nos mostra a presença indestrutível da solidão? Feche os olhos e veja os sóis que se desenham tão vivos nas paredes das nossas pálpebras cerradas. Deixe lá fora os gritos dos que nos chamam, a sedução das cores e da chuva que parece pousar como uma borboleta em sua pálida fronte. Por hora não há verbo que indique a saída, e se quiser um pouquinho de dor, a poesia continuará a nos castigar com as chibatas das redondilhas. Já traímos as estradas que nos foram dadas, e agora só este lugar nos abrigará dos relógios anacrônicos que tornam ainda mais longa a madrugada. Olhe ali... há uma teia a obstruir nossa partida, há uma chave que caiu do outro lado da porta, há uma gota translúcida pendendo daquela haste, e que se parece, em sua perfeição, ao instante de paz que imaginamos nos dar. Deite-se sobre o meu peito, e eu contarei das batalhas que travei contra a conspiração das palavras que se recusaram a sair, contra as verdades que se negaram a chegar. Ouça a tempestade se armando contra o tempo que nunca cede lá fora, onde os ventos estão apagando nossos rastros, nossos odores, e já desenham outros caminhos que talvez nunca cheguemos a aprender. Se as interrogações da noite abalarem nosso sono, não adiantará abrir a janela para que entre o terno consolo das brisas. Entrará a tempestade, e então estaremos os dois condenados ao triste caos dos que sozinhos enfrentam temporais. Observe a delicadeza da gota, que poderá desabar no próximo instante, a menos que se disponha a sorvê-la em sua alma. Fique. Lá fora a angústia, a lavoura, a voragem. Aqui o silêncio, o porto, a mansidão, e a gotinha à espera da colheita. Fechemos a porta.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Agosto
Vês que de repente é agosto? Haveria poesia se fosse abril. Mas neste agosto súbito o que há é a lembrança de um alvorecer, que se tornará cada vez mais parecida a uma mentira, através dos dias que estão por vir. Lembras? O ruído cósmico do sol anunciando que naquele dia chegaria mais tarde, e que toda dor deveria ser deixada nas sombras da madrugada que já durava muito mais que o tempo. As águas do rio vinham trazendo pequenos arbustos que se moviam como náufragos, seguindo a trilha dos mergulhões, em busca da terra. E nós, náufragos da noite, tínhamos o ímpeto de nos lançar às águas, em busca de salvação. Havia por ali umas almas embriagadas, além das nossas, corpos estirados à espera de um sol paternal que os conduzisse pela mão a um porto mais seguro. E havia uma mulher bailando em torno de um homem cansado, tentando convertê-lo em menino. Depois, sentada ao seu lado, ela contava uma história triste, tirada de um livro, sobre alguém que perdeu todas as guerras, inclusive as do coração. E girava entre os dedos uma tampinha de guaraná como se fosse uma folha de louro entre os dedos alvos e diáfanos de uma pitonisa. A história aprofundava o olhar do homem que não queria converter-se em menino, mas a tudo ele respondia que sim, como quem diz sim a qualquer sorte. Foi quando chegou o sol que percebemos que era sábado, “o dia do presente”, e havia sobre o cais “uma tensão inusitada” de que somente agosto é capaz. Levantamo-nos à revelia de nossos próprios corpos gastos pela madrugada, e olhamos ainda uma vez o homem e a mulher antes de deixar o cais. Ela partia, tomando de carona o primeiro barco que zarpava, pois já era agosto, quando os barcos partem para onde existe quem sabe um abril. Se em algum sábado ela regressar, ele provavelmente, da maneira mais distraída, terá esquecido de como seu vestido tinha flores que se agitavam ao vento da margem, terá esquecido dos cirros que surgiram como anjos translúcidos por entre os nimbos, enquanto ela bailava naquela manhã.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Rehael


"Começou a aparecer nos nossos sonhos, sem que pudéssemos evitar, e disse-nos se chamar Rehael. Aparecia em forma de andarilho, de artista, de velho sábio, e quase sempre acordávamos tristes da viagem, sem poder saber se um dia o veríamos real. Enquanto era andarilho, levava-nos para os mais recônditos povoados dos sonhos, e nos dizia maravilhas de se ter uma estrada sem fim como companhia. Como artista, era único. O melhor palhaço, ou o melhor Lisandro. E dos mais insólitos tablados que podiam se sustentar tanto em copas de árvores quanto em águas correntes, arrancava-nos aplausos que beiravam as lágrimas. Em todos os sonhos, de todas as madrugadas, em qualquer forma tinha o dom da potência. No sonho em que nos apareceu como menino, abraçamo-nos ao seu corpo, e com o mais desamparado dos olhares lhe perguntamos por que nos deixava à sorte dos que têm saudades. Desvencilhou-se enigmático, e no sonho seguinte apareceu-nos na forma que nos disse ser a original, do anjo Rehael, da segunda hierarquia dos anjos. Depois de recitar um salmo inédito, prometeu-nos que nunca mais precisaríamos ter saudades. E nos aprisionou no sonho para sempre."

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Explicação da primeira postagem

Uma de minhas filhas, ainda pequena, ouvindo a leitura de um de meus textos, me perguntou se eu só sabia escrever sobre árvore e passarinho... Eu disse que sim, e ainda que o texto fosse sobre o amor ou o desamor, com todos os riscos de ser clichê, sempre haveria uma árvore, uma chuva ou um passarinho. Este primeiro, Espera, é a prova do crime confesso.


Espera

“As árvores estão esperando passar a estação do frio para recriar os frutos da primavera. A borboleta noturna espera passar o dia para voar livre na escuridão. As andorinhas esperam passar as chuvas do inverno para tornar aos ninhais do sul. E o homem, fitando as árvores que abrigam as andorinhas e escondem a borboleta, espera passar a dor do amor perdido”.