quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A hora do riso

Fazia tempo que eu não via televisão. Ver, via, o aparelho desligado, empoeirado, relegado ao silêncio cósmico dos objetos abandonados... Fazia tempo que eu não assistia à televisão, mas o horário reservado à propaganda eleitoral me instigou a ligar o aparelho e me deitar na cama munida de um saquinho de jujuba. Não, não foi necessário que os corajosos candidatos começassem a aparecer para a minha diversão dar partida. Vi pela primeira vez outra campanha que está no ar, a da Justiça Eleitoral, e não tive a menor dúvida quanto ao seu objetivo. Esclarecer? Conscientizar? Nada! Eles querem fazer graça. Desde os dias em que eu tinha dores no esôfago porque engolia ar de tanto rir na frente dos episódios de Friends que eu não ria tanto. Da abelha no ouvido, do choro ao toque do celular, mas de uma das peças em particular: a do homem que passa quatro anos sapateando toda vez que fica nervoso. Quase engasguei com uma jujuba de uva. A Justiça Eleitoral me conquistou, e eu sei que isso era tudo o que ela queria. Juro que dessa vez vou votar direito. Embora na esquerda...

sábado, 23 de agosto de 2008

Sobre o Velho Graça


Uma das minhas grandes admirações se chama Graciliano Ramos. Li Infância, Insônia, Vidas Secas, São Bernardo e Memórias do Cárcere. E depois de Angústia, passei muito tempo sem querer ler mais nada. Achava que nenhuma literatura além daquela valia a pena. Queria morrer. Queria nunca mais escrever. E ao mesmo tempo queria afundar nas páginas do livro e misturar meu sangue à literatura tão perfeita. Os solilóquios íntimos de Luis da Silva tiveram efeito catastrófico sobre minha existência. A crise passou, mas minha admiração pelo Velho Graça continua intocada. Tenho em casa uma brochura da Coleção Brasiliana, da Editora Duetto, com os “Relatórios do Prefeito de Palmeira dos Índios”, uma verdadeira raridade, com textos que marcaram o início da carreira literária do escritor. Sim... é preciso ser muito bom pra conseguir encantar com o texto de um relatório oficial! Graciliano foi prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, no final da década de 1920. Durante seu mandato, enviou ao governador do Estado dois relatórios de prestação de contas, escritos da maneira mais inusitada para um texto oficial. Entenda bem: até como prefeito Graciliano foi um formidável escritor! Fragmentos do relatório:

O início da administração
“Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. (...) Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro.”

Iluminação pública
“A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para fornecimento de luz. Apesar de ser um negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.”

Telegramas
“De ordinário vai para eles dinheiro considerável. (...) Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos caetés.”

Conclusão
“(...) Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse 10 votos. Paz e prosperidade.”

“Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.”

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Passagem pela polícia

Mais uma pequena crônica sobre as meninas reais...

Pétala achou lindo ser presa. Foi recolhida por uma viatura da Polícia Militar na madrugada de uma terça-feira, quando dava inocentes voltinhas de carro ao redor de uma praça central, junto com quatro amigos adolescentes. Três meninos e uma menina de pijama, tirada da cama para passear. Só o motorista, Flavinho, era maior de idade, mas foi recolhido também porque transportava os menores, com a agravante de um estar de pijama. Todos foram recolhidos. Até o carro, com a documentação vencida. Pétala, Billy, Rodrigo e a do pijama numa moderna perua da Wolkswagen. Flavinho num camburão enferrujado. “Mas o que nós fizemos?” era a pergunta geral. E de cassetetes em punhos, os tiras os mandaram calar a boca e passar pra dentro da viatura. Direto para a Vara da Infância e Adolescência... ou Juventude, não sei. A caminho, descobriram, pela conversa entre os tiras, que tinham passado quatro vezes pela viatura parada, de plantão na praça, rindo de modo desvairado, como se fossem adolescentes. Despertaram suspeitas. “Suspeita de quê?” atreveu-se Pétala para o policial do volante. “De que são menores, ora...”. “Mas nós somos”, disse uma outra voz quase sumida, de dentro do pijama. Do fundo do camburão, pelo celular, Flavinho chamou o pai advogado. Que não se sabe por quais forças chegou à Vara da Infância antes das viaturas. Tudo esclarecido. Descobriu-se lá, que todos, menos Flavinho, eram menores dando umas voltinhas pela praça de madrugada... Só fiquei sabendo no dia seguinte, para a sorte de todos. Se dependesse de mim, teriam dormido no xadrez. O carro preso era o meu. Pétala passou a semana narrando a crônica policial, primeiro pra mim, depois para os amigos. Pessoalmente, pelo telefone, pela internet. E toda vez que passava por mim, ainda me gozava: “Tiras, mãe? Xadrez? Tu é muito sem noção...”

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Interrompendo a série...

Ando pensando seriamente em me mudar do Blogspot, por não ter descoberto ainda a difícil arte de instalar neste blog um contador de visitas. Não, eu não tenho a ilusão de que o Ave, Palavra! seja um endereço onde o leitor chega diariamente resfolegante de pressa para ler as eventuais bobagens que escrevo. Mas gostaria de saber se pelo menos sou visitada uma vez por dia! Meus três leitores, esses eu sei que aparecem por aqui de vez em quando, que queimam pestanas em torno do meu pobre latim, comem uns bolinhos de chuva, e me deixam gentis comentários. Não sei se há outros. Andei pensando também em trocar o nome do blog para algo mais atrativo, do tipo “Nós na Balada”, “Eu sou o cara”, “Muvuca”, porque conforme o último Censo, há muito mais gente que gosta de bandalheira do que de literatura. Mas a carga de pobreza seria pesada demais para as minhas costelas. E tudo para atrair leitores que não são nem de longe os que eu desejo ter... Depois, o que eu escreveria num blog com um nome desses em seu registro de nascimento? Não ando em baladas, que escritor que se preza, hoje e desde a Idade Média, gosta mesmo é de um bom boteco pé sujo – que obviamente é mais antigo que isso – apesar do exemplo de Vinicius de Moraes, que freqüentava as rodas acima das camadas de turbulência e só bebia uísque. Mas Vinicius podia. Era o cara. Já nós, do Ave, Palavra!, sentamo-nos no Empório do Índio e mastigamos as falanges pensando em estratégias miraculosas para atrair leitores... Ah, o blog poderia também se chamar “Diário Íntimo, Ilegal e Imoral”, e eu ia ter que rebolar pra inventar histórias que proporcionassem intenso prazer aos punhados de leitores. Paciência. Vamos ficando no Ave, Palavra!, sem saber quantos têm vindo.

domingo, 10 de agosto de 2008

Meninas reais

Esta pequena série de crônicas que começo a publicar hoje foi escrita há algum tempo, quando eu tentava escrever textos menos líricos, menos introspectivos – pra não dizer menos sentimentais – mas que acabaram resultando em algo que acabei considerando difícil publicar. Mudei de idéia. São textos sem mais compromisso que o de contar pequenas irrelevâncias diárias. Somente este primeiro foi publicado um dia, num blog cujo nome até esqueci, e foi lido, sem dúvida, pelos meus inumeráveis leitores de toda a pátria amada Brasil e alguns parentes da Cracóvia... A série, sem nome, é baseada em meninas reais.


Café e rock’n roll

Paula ouve rock às seis e meia da manhã, enquanto se apronta para a escola. Eu, enquanto faço o café, vou desmantelando a cozinha, procurando o açúcar que escondi das formigas. “Meu Deus, que música é essa, a uma hora dessas?”. Paula grita no banheiro, em língua indecifrável, acompanhando a melodia. “Essa guitarra não me é estranha...”, penso, e enfim o açúcar, na gaveta dos legumes, na geladeira. Cheio de formigas. A pirada sai do banheiro enrolada em três toalhas, enquanto os pés molhados vão deixando um rastro aquático até o quarto. “Por que ela não aprende a se enxugar antes de sair do banheiro?” Dou-me conta de que tenho me perguntado o mesmo todas as manhãs dos últimos dez anos – pelo menos – e tenho certeza de que vou continuar me perguntando. “Ela ainda diz que a maluca sou eu”. No quarto, a garota rock´n roll aumenta o som. “Essa música vai me enlouquecer”, digo pra mim em voz alta, sapecando os dedos na tampa do bule. Café pronto. Escondo o açúcar em lugar mais seguro. “Na idade dela, eu ouvia caras bons. Santana, Peter Frampton, Pink Floyd...”. Uniformizada, a maluca vem para a cozinha tomar café. E o som mandando fogo nas paredes da casa. “Minha filha, meus ouvidos não têm mais paciência pra isso... quem são esses caras que você ouve?”. E ela, com a cara mais impávida e a boca cheia de pão torrado: “Pink Floyd, mãe”.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Autobiografia

ou Minha vida dá uma crônica!
Nasci no ano de 1415 do calendário Armênio, e o que me consola é que no Rúnico já era 2216. Só agora compreendo que o Gregoriano é o pacificador dos calendários. Era o ano do cavalo no horóscopo chinês e o ano internacional do arroz. Mas isto não influenciou em nada minha vida, que podia ter sido menos pálida se eu tivesse me deixado governar pelo fogo, pelo jasmim, pelo saxofone e pelo número 5. Bem, talvez o início da guerra do Vietnã naquele ano tenha suscitado em meu espírito um profundo desejo de paz, e a fundação da Igreja de Satã originado a impressão de um risco horizontal no meu olho esquerdo. Não sei.

A astrologia reversa diz que nasci Touro com a personalidade de Peixes. Paciência. O mundo andava muito louco em 1966... Manuel Bandeira fazia oitenta anos, ensinando ao mundo o Itinerário de Pasárgada, para onde finalmente aprendi a ir, mais de 30 anos depois. Nada mais. Apenas nascemos: eu, Zeca Baleiro e o terrorista iraquiano Abu Musab al-Zarqawi, enquanto a boca ávida de Bob Dylan procurava a gaita, nalgum lugar.

Em 1970, quando o Pelé voltou do México abraçado à taça Jules Rimet, eu ainda não tinha televisão em casa. Ainda não havia me dado conta de minha própria existência. Mas se tivesse televisão, certamente colocaria no canal do Capitão Aza. Um pouco depois o Etna entrou em erupção, a juventude entrou em erupção porque Jim Morrison se foi, as crianças entraram em erupção pelo maior parque de diversões do mundo, o Walt Disney World. Mas na época não fiquei sabendo de nada. Tinha cinco anos e talvez estivesse pensando no Nobel de Literatura do Pablo Neruda.

Passei os anos de 1972, 73 e 74 me guardando dos invernos implacáveis dos confins do Paraná. Nos dias hibernais, meu companheiro fiel era o Gato Felix, que me ensinou a compreender as primeiras frases escritas. De vez em quando a Vila Sésamo me despertava da letargia. Mas o ano de 1975 chegou e tudo o que me rodeava foi salvo dos insípidos anos de geada: descobri que existiam livros, e foi o princípio de um amor eterno, embora naquele tempo eu ainda saltasse de cima da cerca com uma fronha amarrada nas costas. Pensava que era o Flash Gordon.

1980 foi o primeiro ano do resto de minha vida porque topei de frente com o amor numa tarde de maio em que o sol de outono estendia caminhos amarelos sob as paineiras. Todos os amores que nasceram naquele ano foram embalados pela Imagine do beatle assassinado, pelos sonetos do Vinicius morto. O meu não foi diferente.

De lá pra cá dei mais 26 voltas ao redor do sol, plantando muito pé de flor que deu capim, capim que deu flor, e nada me desviou do caminho da circunspeção... nem a passagem do Halley, a queda do muro de Berlim, a carona que pegaram Drummond, Chico Mendes e Rubem Braga no relâmpago do adeus. Mas estive atenta ao mundo, vendo muita coisa que não queria ver e outras tantas que não pretendo morrer sem rever, como a chuva nas ruas esmigalhadas de solidão da cidade distante onde nasci.

Paro aqui de enumerar os anos porque daí pra frente “os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”, embora não tenha mencionado relevâncias como as palavras em polonês que aprendi aos seis anos, os pássaros de papel na tarde de Curitiba, a música para alegrar o dia que aprendi com uma índia Karipuna, o encontro com o poeta vestido de branco que canta ainda que faça escuro...

Já é 1457 no calendário Armênio, 2258 no Rúnico, e o horóscopo continua me prometendo um pouco de ternura depois da lua cheia. Mas tudo está bem, enquanto vou achando que sou zen. Amanheço abraçada ao tempo, construindo as manhãs com mais esperança do que raios de sol. Entardeço enumerando sonhos na margem do meu rio, derramando uma a uma as páginas do livro de areia de Borges. Anoiteço dançando entre os cristais do sentimento das gentes, e adormeço no cheiro dos cravos capturados nos quintais da infância que continua a arder no sonho. No peito trago a vontade insondável de voltar a ter cinco anos, e não saber de nada. No espelho vejo o olhar sereno de alguém que gosto. Meu velho gato Stefen Fry anda por perto, vendo passarem os anos e os temporais.