terça-feira, 28 de agosto de 2007

Um japiim

Júlia é uma menina cheia de idéias. Joga a bicicleta para um lado e se deita comigo na rede, onde também está recostado Rubem Braga. Ficamos em silêncio, os três, enquanto o vento verga as folhagens e as nuvens vêm marchando lentas em nossa direção.
_ Olha, mãe, aquele passarinho...
Há um japiim silencioso na jaqueira.
_ Por que ele tá quieto?
_ A jaqueira deve ter contado pra ele que descascaram seu tronco e ela vai morrer.
_ Passarinho gosta de árvore, né?
_ É...
_ ...
_ Sabe o nome dele?
_ Japirinho!
_ Japiim, meu amor, é japiim.
Mas Japirinho é tão belo fluindo de sua boquinha alegre, que me arrependo da correção.
_ Ah...
_ Aquele outro ali é o bem-te-vi.
_ Mãe, o bem-te-vi fala bem-te-vi. E o japirinho, o que que fala?
_ Ele imita os outros passarinhos. Vários outros.
_ Eu queria ser passarinho...
_ E eu queria ser garça.
_ Pra gente ir bem lá em cima ver os aviões, a floresta, as nuvens...
E continua desfiando a lista de coisas que poderia fazer se fosse passarinho. Depois pula sobre a bicicleta e ensaia seu vôo pelo quintal. Eu e Rubem Braga ficamos na rede para sempre. O japiim continua na árvore, e pelo seu jeitinho vergado, deve estar pensando na vida e na morte.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A casa

Noite passada revi em sonho a casa de minha infância. Era ainda maior do que nas lembranças, que tantas vezes me traíram, e tinha o ar feliz das aquarelas que nunca perdem a cor. Branca e solitária entre as paineiras, dava-se ao deleite de receber o outono por todas as suas janelas. Somente Maria, minha irmã, que ainda era moça naquele tempo improvável do sonho, estava na varanda, varrendo folhas secas. Ninguém mais. O céu era rosado como nas tardes do princípio do inverno e o vento tornava a cobrir de folhas o chão de tábuas da varanda, mas ainda assim Maria sorria um sorriso que prenunciava a primavera. As roupas nos varais tremulavam como bandeiras floridas, quando um açoite maior do vento fechou com estrondo uma das janelas. Então acordei. Ma ainda vi um último lampejo do olhar de minha irmã, como um convite ao exílio na casa da nossa infância.
Era madrugada, e um vento amazônico nascido no princípio da noite teimava em continuar perturbando o sono das jaqueiras do quintal ao lado, como a paz das paineiras no sonho. Revi a casa, agora no escuro do quarto, pela madrugada que levou três noites para chegar ao fim. Em toda a sua solidez, continuei a vê-la como a luz de um sol implacável, cuja bolinha de fogo continuasse a me perseguir de olhos fechados. A casa em seu tempo, onde minha mãe, de cabelos compridos e alvos braços, levava pela mão um menino que não tinha consciência da imensa beleza de seus olhos azuis: meu pequenino irmão, que chorava porque meu pai não nos trouxera bergamotas. Em frente à casa, de um caminhão descia meu pai, o mesmo homem da fotografia na parede da sala, que trazia um cravo vermelho no bolso do uniforme do soldado triste que ele foi.
Num tempo menos feliz, na varanda da casa testemunhei o chorinho remoto do velho pai de Nina pela morte da filha tuberculosa. Naquele tempo intangível nenhum de nós disfarçava os afetos, e éramos puros demais para imaginar quantas mortes experimentaríamos antes da derradeira. Nina, que me contava as histórias dos fantasmas que viriam povoar minha vida, ao menos sabia que ela mesma seria deles o mais renitente.
Coberta de uma recôndita dignidade, a casa veio tão certeira na madrugada me dizer que intangível é o tempo, mas não o que ele ensina. E embora tenha levado meu sono, como uma brisa que despertasse folhagens inertes, veio me lembrar de que não precisamos ser tão rudes nem perder tanto tempo remoendo passagens mortificantes. Pois o que fica, no final de qualquer conta, é uma saudade demorada... das coisas, das pessoas, e até do que ainda está por vir.
Pensarei agora todos os dias na casa, que hoje existe apenas no chão incerto de minha memória e de meu sonho. Tenho medo que dia desses, nestes tempos também incertos, ela perca este seu último endereço.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Os aviões

Inspirado em Chuvisco na Paisagem, por sua vez inspirado em Pearl Harbor

Amanhecia quando começaram a passar os aviões. E o primeiro a passar foi o primeiro avião da vida do lugar. Nunca antes houve outro que tivesse sobrevoado tão remoto povoado ao sopé de tão remota montanha, onde tudo o que se via no céu eram as neves do inverno e as nuvens baixas que escondiam os sóis e as luas. Naquele dia as nuvens abriram espaço aos aviões e todos correram para os campos com o olhar perplexo para ver passarem os grandes pássaros de aço com seus roncos de monstro desperto. Os rostos queimavam de felicidade ao insólito desfile de meia dúzia de aeroplanos que faziam cinematográficas acrobacias, inusitados desenhos no céu. As crianças eram as mais encantadas, e habituaram-se logo à névoa mágica despejada sobre o povoado, pois as cerrações dos seus invernos na montanha eram infinitamente mais densas. Os velhos deitavam-se de costas uns ao lado dos outros, para ver o espetáculo, e nem eles nem as crianças sentiam passar o tempo, hipnotizados pelo milagre da descoberta de sua existência pelos homens que possuíam aviões. E quando não havia mais ninguém dentro das casas, quando todos se encontravam deitados na relva, os aviões despejaram a névoa vermelha que silenciosamente devastou os campos verdes e adormeceu os velhos, os jovens e as crianças para toda a eternidade.