domingo, 14 de outubro de 2007

Febre

Da série Breves Contos


Ele chegou no meio da vaga viagem pela noite. Trazia nas mãos um instante de febre e na boca uma tormenta para trocar pelo refúgio sob o meu vestido. Meu silêncio pediu apenas um momento de espera antes que entrasse, antevendo o risco e a delícia, mas seus dedos passeavam já pela geografia de minha nuca, descobrindo no tato o cheiro da rosa fresca, nascida na última manhã. Arrisquei um gesto desatado da palavra, os lábios ensaiando uma letra incógnita, aonde sua língua veio certeira encaixar-se, num movimento antecipado ao sim. Abandonei-me. Mãos sorrateiras, tentáculos de hera, se espalharam sem destino traçado, encontrando em breves percursos minhas entranhas em tempestade, seu falo em abalo sísmico. É a morte, ainda pensei, enquanto sua febre me desnudava na travessia incerta entre o corredor e o apocalipse. Agora o encontro marcado desde a porta. Os quadris do macho rompendo as sombras entre as pernas postas da fêmea, seus dedos opressivos maculando a alvura cósmica das costas, a boca lasciva em desvario entre o ouvido e o colo, os cheiros de flor e líquidos anunciando a queda vertiginosa. Minutos insondáveis de confusão de línguas, pernas, cabelos, mãos, num descompasso sincronizado em que a urgência do final rompia as linhas do tempo, da vida, da morte, até o gozo em alta freqüência. O gozo. Foi quando a verdade da lâmpada obtusa nos revelou atônitos mergulhados em olhos, por um minuto milenar, na mudez das coisas do quarto, no rumor quarto minguante, em mútuo reconhecimento. Voltamos então ao princípio. Ao verbo. Sussurrou-me odores, um hálito de promessa, uma língua de veludo morno. A pele dizendo do súbito, da felicidade clandestina, do segredo inviolável. Ainda agora permaneço em silêncio obediente, na quietude abismal dos verdadeiros segredos, porque nesta noite ele virá, trazendo outra febre.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Florzinha de papel


Da série Breves Contos



_ Sabe o que eu fiz com aquela florzinha de papel de guardanapo branca e leve como a pena de um passarinho que você me deu depois de misturar uns camparis com cerveja e dizer na frente de todo mundo que eu era gostosa que eu era “bonita pra burro” pensando que eu ia me impressionar só porque sabia de cor o Rondó de Efeito do Manuel Bandeira e ainda ter dito como se fosse a filosofia mais incrível que gosta mesmo é de viver como um cão sem dono sem precisar se dar pra ninguém e ter achado a maior graça do mundo quando eu disse olhando para o nada que tem gente que acha bonito ser canalha porque afinal de contas o Nélson Rodrigues veio com a idéia estapafúrdia de que ser canalha tinha poesia só que isso era nos anos 50 ou 40 não sei e todos os canalhas do Nélson caíram em desgraça mas você só prestou atenção nas partes em que eles tinham o mundo aos seus pés porque sabiam inventar verdades pra seduzir com os olhos mais limpos do mundo então você fez cara de sentimental com olheiras e disse com o maior cinismo que além da flor tinha pra mim umas pastilhas purgativas e nessa hora eu tive vontade de dizer só que fiquei sem graça e não disse que você está mais pra “O grande mentecapto” do que pra Don Juan com essa patética florzinha de papel que fica distribuindo pra qualquer fêmea desavisada que em pleno século vinte e um ainda acredita na sensibilidade do macho? Joguei na primeira poça de lama que encontrei quando fui embora.


domingo, 7 de outubro de 2007

Curta-metragem


De uma série de breves contos

Ela acendeu o último cigarro e fumou devagar. Prolongava sempre o prazer do último cigarro. A boquinha rosada, engelhando-se como um cuzinho ao contato com o filtro, movia-se fluida a exibir intelectualidades. “O melhor que vi foi do Godard”, disse, pensando que ao olhar a boquinha eu prestasse atenção ao que dizia. “Je vous salue, Marie”, concluiu, depois apenas se entregou ao gozo das mansas tragadas. “O melhor que vi está aí no telefone celular”, disse-lhe, juntando um pouco de sarcasmo, um pouco de tesão. Pegou o aparelho, certamente pensando na estranheza de eu achar mais interessante que Godard um daqueles breves vídeos sobre os acasos. Localizou as imagens feitas na véspera. Eu, macho ao último grau, em descarada cópula com a amante mais recente. Curtíssima metragem. Quatro segundos pré-gozo. Seis da sublime desmesura do gozo. Cinco de créditos aos suspiros e risos. “Godard é mais delicado, por isso mais macho”, ela disse apenas, sem mudar a expressão da boquinha rósea, desmontando meu cinismo e extraindo do fim do cigarro um último instante de prazer.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

“If you really want to touch someone… send them a letter”


Texto de Margarida C.


“A escrita é a única coisa que não se evapora. A única que não se tem jamais como negar ou tomar de volta. Ao limite, é assim como a derradeira generosidade de que ainda fomos capazes quando já não éramos capazes, acaso um dia o fim nos toque, seja por escolha ou ‘por magia’. É por isso que, de uma forma ou de outra, mais ou menos, melhor ou pior, eu escrevo. Escrevo sempre. Para que no auge de um qualquer ímpeto não leve tudo comigo quando me for embora. É o garante que ofereço aos outros de que, pelo menos, há de haver sempre qualquer coisa que lhes deixo, ainda que contra a minha vontade de nada consentir que lhes fique.”
“E é igualmente por isso que desconfio de todos os que nunca me escreveram nada. Um dia, se a vida nos separar, nem sequer o vago abraço das palavras terão consentido que ficasse comigo. Não é justo. E, por não ser justo, rebelar-me-ei sempre a que seja recíproco.”


Do blog Carnnets de Lisbonne 2007
carnnetsdelisbonne2007.wordpress.com

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Primeiras Chuvas


Memória

Aos nove anos tive meu primeiro contato com minha morte. Com a morte dos outros o contato foi anterior. Nina, por exemplo, a esquálida tuberculosa que morreu num quartinho abjeto ao lado de minha casa, vinha todas as tardes sentar-se à sombra de minha árvore, de onde me olhava com saudade da vida. Mas no improvável tempo de meus cinco anos, achava que todos os fantasmas humanos eram inofensivos. Aos nove, tinha medo da chuva. Foi a chuva o meu verdadeiro fantasma. Acreditava que qualquer garoa podia mudar de repente de humor e violar minha janela, minha cama, minhas cobertas.

Havia mesmo chuvas indomáveis, sempre na madrugada, que não se intimidavam em arrancar árvores do lugar, derrubar paredes, lançar ao chão telhados inteiros e tirar para sempre o nosso sono. Na manhã, eu ia para as ruas testemunhar a ressaca, e tinha pena e fascínio pelas casas destruídas, pela tristeza dos desabrigados, pelo desamparo dos quintais cheios de enormes galhos e cercas caídas.

Foi numa madrugada assim que a morte me acenou pela primeira vez. Na tormenta mais feroz daquele ano, os trovões explodiam em meu quarto, estremecendo a cama e acordando em mim um sentimento de orfandade. De olhos nos clarões que se abriam entre a mobília, eu pensava que aqueles relâmpagos tinham uma fúria que não era desse mundo, via o final dos tempos, e me encolhia diante da certeza de que um tufão me arrancaria da cama, me levando para a morte. E antes de completar 10 anos. Abandonei minha cama e me aninhei junto a meu irmão, cujo pequeno corpo ardia em febres de medo. Não sei quanto tempo se passou naquela madrugada antes que um tronco perdido na ventania abrisse um buraco na parede de tábuas e se alojasse em minha cama, onde a morte esperava me encontrar.

Do fundo das cobertas de meu irmão, pelo resto da noite vi pelo buraco a tempestade arremessando-se contra o mundo. Os que moravam na casa passaram a me olhar como se eu tivesse qualquer coisa de santo. Eu não. Mas depois disso as “chuvas tempestivas” e as “ventanias soltas” nunca mais me fizeram medo. Pelo contrário. Passamos a viver uma história de amor. Eterno.