segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Primeiras Chuvas


Memória

Aos nove anos tive meu primeiro contato com minha morte. Com a morte dos outros o contato foi anterior. Nina, por exemplo, a esquálida tuberculosa que morreu num quartinho abjeto ao lado de minha casa, vinha todas as tardes sentar-se à sombra de minha árvore, de onde me olhava com saudade da vida. Mas no improvável tempo de meus cinco anos, achava que todos os fantasmas humanos eram inofensivos. Aos nove, tinha medo da chuva. Foi a chuva o meu verdadeiro fantasma. Acreditava que qualquer garoa podia mudar de repente de humor e violar minha janela, minha cama, minhas cobertas.

Havia mesmo chuvas indomáveis, sempre na madrugada, que não se intimidavam em arrancar árvores do lugar, derrubar paredes, lançar ao chão telhados inteiros e tirar para sempre o nosso sono. Na manhã, eu ia para as ruas testemunhar a ressaca, e tinha pena e fascínio pelas casas destruídas, pela tristeza dos desabrigados, pelo desamparo dos quintais cheios de enormes galhos e cercas caídas.

Foi numa madrugada assim que a morte me acenou pela primeira vez. Na tormenta mais feroz daquele ano, os trovões explodiam em meu quarto, estremecendo a cama e acordando em mim um sentimento de orfandade. De olhos nos clarões que se abriam entre a mobília, eu pensava que aqueles relâmpagos tinham uma fúria que não era desse mundo, via o final dos tempos, e me encolhia diante da certeza de que um tufão me arrancaria da cama, me levando para a morte. E antes de completar 10 anos. Abandonei minha cama e me aninhei junto a meu irmão, cujo pequeno corpo ardia em febres de medo. Não sei quanto tempo se passou naquela madrugada antes que um tronco perdido na ventania abrisse um buraco na parede de tábuas e se alojasse em minha cama, onde a morte esperava me encontrar.

Do fundo das cobertas de meu irmão, pelo resto da noite vi pelo buraco a tempestade arremessando-se contra o mundo. Os que moravam na casa passaram a me olhar como se eu tivesse qualquer coisa de santo. Eu não. Mas depois disso as “chuvas tempestivas” e as “ventanias soltas” nunca mais me fizeram medo. Pelo contrário. Passamos a viver uma história de amor. Eterno.

2 comentários:

Maria disse...

Olha que lesaeira, eu achava que esse era o texto da Nina. Só agora, passeando pela página, fui perceber que não se travava dele. Muita distração, porque são visivelmente diferentes. Enfim. Li-o hoje e ele me agradou muito. Lembrou-me o Sammarino, rs... E histórias que me contavam de um tempo em que ainda estava longe de nascer, entre outras coisas.

:)

Maria disse...

Sammarino, é isso? Ou Sanmarino? Agora não sei mais...