domingo, 30 de setembro de 2007

Depois da chuva das duas


Texto de Maria Rojanski


“Meu pequeno menino, tanto relampeja, tanto é zinco este céu, tanto se anuncia esta chuva, a água ora parece a mais límpida, e é fria, é fria. O céu carregado de santa chuva conta-se chumbo, mas a tarde é tão clara, tão branca, querido. Meu pequenino. A copa da árvore cintila o verde das folhas e os jambos são mais saborosos quando assim molhados de chuva, quando assim a chuva é santa. A rolinha se esconde no regaço, acha abrigo entre os galhos. Vem, tu, menino querido, menino miúdo, também buscar teu abrigo, se aí estiver difícil. Aqui a rabeca arrebenta numa cantiga antiga, antiga, eu nunca vi. Não te sintas só, não fiques assim irritado, não te sintas magoado, não te digas pobre, que tu és grande. Tão grande, meu pequeno. Doce menino. Pálido e brando. É outubro, não te vejas um barco solto, não te vás mais para lá. Atraca neste porto e vem. Meu menino, é tão tolo dizer-te, mas a verdade é que ninguém tem culpa, é tão complicado, e não existe culpado. Não faça assim, enxuga teu olho de tua solidão. Se quiseres, se precisares, estou. Se não estiver bom, vem. Aqui tem música, aqui tem prosa, tem quem te ouça, tem colo e abraço, meu menino tão querido. Miúdo. Vem depois da chuva das duas da tarde, fazer passar tua dor”.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Ballet


Deito-me na laje morna junto aos gatos que há horas se entregam lânguidos às próprias línguas. As últimas gotas da tarde escorrem em fios translúcidos sobre os telhados. No quarto fechado, a pequena bailarina ouve Chopin e dança de sapatilha “rota e fúlgida” o seu petit ballet, sem se importar que umas notas fugitivas do piano escapem por debaixo da porta e venham refugiar-se junto aos gatos. A este sinal, asas brancas dançam nas lonjuras azuis, nuvens dançam véus fluidos na atmosfera rosada, jovens e velhas folhas dançam de rosto colado às árvores. A bailarina vem para a laje, onde há espaço para o seu grand jeté. Chopin está vivo no quarto. Abraço um dos gatos, e num rompante de ternura, danço com aquele cego que não podia ver a primavera em Paris...



segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Encontro com o Poeta


A segunda-feira mal desabando sobre a minha cabeça – depois de um doce sonho em que desembarcava em plena manhã de sábado para ir ver o encontro do sol com o rio – abro o portão para sair, e em frente à minha casa vai passando o meu amigo Poeta. Ia taciturno, observando as flores de jambo deitadas sobre as raras calçadas, e resmungava ainda umas notas de alguma canção que ouvira no bar onde provavelmente atravessara a noite. Se eu não me dirigisse à sua esquálida figura, não teria me visto. Iam com ele, sob o braço, aqueles mesmos originais que me mostrou cinco anos atrás, a sua obra, o seu suor, a alma do mundo traduzida em versos. Li-os naqueles remotos tempos e os achei belíssimos. “Bravo, Poeta”, disse-lhe na época, “em breve estará na livraria”. Ele se despediu de mim com lágrimas nos olhos. De alegria e confiança. Agora, de nosso breve encontro, o Poeta saiu novamente com lágrimas. Disse que ia enterrar para sempre a poesia no fundo de uma gaveta. Os originais, quase irreconhecíveis, tinham as nódoas deixadas pelas visitas inumeráveis a editoras, a órgãos do poder público, a empresários ocupadíssimos (e também riquíssimos), de onde ele sempre saiu com as mesmas respostas. Aquelas que foram embotando o seu poder criativo e a sua vontade de imprimir versos.


Disse adeus ao Poeta, sem coragem de lhe pedir que repensasse, que um dia alguém perceberia o tamanho da perda em não incentivar a publicação de sua obra, que coisa e tal... Não pude dizer para ele esperar. Não era justo. Minha antena, que há muito tempo não capta quase nada de novo no reino dos versos, sabe que os poetas têm vivido à margem do sistema literário, e as revistas especializadas mostram que a poesia é hoje um gênero esquecido pelos editores, apenas sobrevivendo num horizonte cheio de incertezas, porque o retorno do mercado é insignificante. É enorme a constelação dos poetas relegados aos confins do esquecimento.

Hoje acho lindíssimo ler Mário Quintana, João Cabral de Melo Neto, Paulo Leminsky, Manuel Bandeira, Manoel de Barros... e pra não dizer que só leio os brasileiros, já li um pouco de Pablo Neruda, Fernando Pessoa e Edgar Allan Poe – cheios de traças na última estante da biblioteca pública – e só, que eu também não costumo variar muito de poeta. Mas só pra completar a idéia, acho lindíssimo e tenho crises de tristeza por saber que depois deles, e dos outros que eu não leio – mas sei o quanto são grandes – não aparece nenhum novo poeta nas revistas, nos jornais, na televisão, nas livrarias. Ninguém mais faz alarde sobre um grande poeta de um desses centros urbanos inumeráveis ou de lá das lonjuras do Matão do Piaçacá. Simplesmente porque ninguém o descobre.

Quase lhe disse “não importa, Poeta, o teu sentimento, o teu transe, o teu lirismo, o teu apelo visionário, vive a tua angústia, que é dela que vivem os poetas.” Contudo, disse-lhe apenas – e muito sem graça – que maior que tudo isso é ter a poesia dentro da gente. Ele me olhou sem ilusão. Sabe que no ritmo em que vai, logo, logo, parte desta para melhor. E com ele vai morrer sua poesia, sem o abrigo perene encontrado por Bandeira, por Leminsky, Quintana, Neruda...

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Impressão anunciada


Nenhuma morte em toda a literatura que conheço me impressiona mais que a de Santiago Nasar. E digo isto com o verbo no presente porque acabo de reler “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Márquez, e até o momento me encontro com o fôlego em suspenso com a morte do personagem. Eu não estou revelando aqui nenhuma surpresa do livro – sossegue, se ainda não o leu – pois a morte de Santiago Nasar tanto é anunciada no próprio título quanto na primeira linha do romance: “No dia em que o iam matar, Santiago Nasar levantou-se às 05:30 da manhã...”. Mas o que me é impressionante não é a brutalidade de sua morte, embora se possa ter uma vertigem à leitura de tanto sangue, nem as razões que levaram os assassinos a cometer tão primitivo e literário crime, mas o encadeamento de pormenores que tornaram uma cidade inteira sabedora do assassínio antes que ele acontecesse, sem que ninguém pudesse fazer algo para impedir. Os próprios assassinos, irmãos de uma mulher devolvida pelo marido na noite de núpcias, encarregaram-se de anunciar a quem passasse que estavam esperando Santiago Nasar para matá-lo, como se de algum modo desejassem que alguém pelo amor de Deus os impedisse. Por ceticismo, por indiferença, porque não houve tempo, e até em alguns casos por consentimento, a cidade inteira foi cúmplice de uma morte praticada a golpes de facas de estripar porcos, que por sua vez puseram pra fora, diante de centenas de olhos petrificados, todas as vísceras de Santiago Nasar. Contudo, Santiago Nasar morreu sereno, às sete horas da manhã, vestido de linho branco e sem saber porque morria, sob o sol radiante do Caribe, depois de ter visto passar o bispo dentro de um navio que nunca se detinha em seu povoado esquecido. A moça desonrada, sem nenhuma convicção do que dizia, o acusara de ter sido o seu “autor”.
Talvez esta minha dramática – mas sincera – impressão esteja ligada ao fato de García Márquez ter se baseado na morte real de seu amigo de infância Cayetano Gentile para escrever a história, reconstituída através de depoimentos, e só depois da morte da mãe do morto, Julieta Chimento, 30 anos depois, em respeito à sua dor. Impedido também por sua mãe, que tinha Cayetano como um filho, García Márquez não se sentiu “com ânimo para continuar vivendo em paz enquanto não escrevesse a história da morte de Cayetano”, conforme conta no livro autobiográfico “Viver para contar”.

Quando finalmente escreveu “Crônica de uma morte anunciada”, cujo tema literário definitivo é o da responsabilidade coletiva, a mãe disse que jamais o leria, pois “uma coisa que foi tão ruim na vida não pode ter ficado boa num livro”. Enganou-se. A força do realismo mágico de García Márquez neste livro nos faz esquecer sem culpa que Santiago Nasar é Cayetano Gentile, assassinado na porta da frente de sua casa, onde a mãe acabara de passar a tranca, acreditando que ele já houvesse se refugiado dentro.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Meninas ao sol

Para Joana D' arc Gabriel

O sol tem nos esperado paciente naquele lugar onde mora a memória de nossos melhores dias. Se tu lá fores, vai como quem foge dos dias cinzentos de tua cidade de ipês amarelos, que eu deixarei aqui meu rio, meu barco de papel, minha garrafa de náufrago que guarda uma folha em branco, e passearei de mãos dadas contigo entre os gramados às vezes castigados pelo inverno, entre as papoulas agitadas pelos ventos constantes de nossa cidade tão alta. Desceremos as escadas que levam ao meio da praça e escolheremos o melhor canto para abrigar nossa saudade. Então rabiscaremos cadernos, faremos jogos infantis para descobrir o futuro, inventaremos poemas de sangue para quatro ou cinco daqueles nossos amores extraviados... Se quiseres, irei contigo visitar a casa da rua Tókio, quase oculta entre as samambaias, mas que deverá ainda guardar um pouco da doçura das meninas que debruçadas na janela do quarto espiavam a felicidade desenhada nas nuvens que pareciam encostar-se nos montes salpicados do gado branquinho. E tu irás comigo ao pequeno morro de onde veremos que o sol ainda é o mesmo, ainda que tantas sombras tenham vindo empalidecer por vezes as nossas tardes, ao passo desse tempo tão longo de nosso desencontro. Ou então, se for sábado, podemos outra vez pegar a estrada até Santa Isabel do Ivaí ou Santa Cruz do Monte Castelo, de onde voltaremos rindo depois, em qualquer boléia. Que só nos importe que seja sob o sol que está à nossa espera. E que ele seja generoso ao iluminar a lembrança daqueles teus cabelos que se derramavam em anéis dourados pelos teus ombros, na manhã em que fugimos da escola somente para assistir à passagem da própria manhã. De ti não possuo retratos, mas te vejo tão clara e tão bela sentada na calçada sob uma paineira, um pulôver vermelho, um livro gasto sob o braço, uns tênis muito brancos e um olhar de anjo livre sob os óculos. Com tua palavra simples poderás me ajudar a compreender as razões dos desencantos de agora, e para ti eu cantarei uma canção que devolva a ternura aos nossos olhares porventura endurecidos. Levarei aquele livrinho amarelo em que me escreveste em letrinhas reviradas que eu nunca esquecesse de nós duas. Guardo-o em minha gaveta há 25 anos. Deixa aí os ipês, que florescerão de novo na próxima primavera, que eu deixarei aqui as árvores que sob a chuva gotejam mangas. Vai, antes que o tempo. Antes que a vida. Que a lembrança. Vamos andar sob o sol de Loanda...

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Encontros


“Debaixo de minha pele alguém me olha esquisito pensando que eu sou ele”.
Affonso Romano de Sant’Anna

Todos os monstros que me habitam estão despertos nesta noite. Gostam da madrugada, quando me sabem de olhos acesos tecendo teias na escuridão, e fazem festa diante de minha cama. Tenho náuseas por seus sussurros jocosos, por seu tamanho vulgar, por seus disfarces de bons amigos, sempre prontos a comemorar em cirandas os meus passos incertos.
Há anos que estamos em guerra, e o da impaciência, rude como um demônio, tem me vencido em várias batalhas. Tem sempre um sorriso nos lábios, e com toda a paciência que guarda somente para si, instiga-me a quebrar os cristais que não possuo, a estilhaçar o espelho em que me vejo nua, a invadir a sala de meus inimigos e esbofetear sua máscara, a lançar o telefone silencioso contra o muro do itinerário vazio por onde estou de braços dados com o monstro da solidão.
Este, o único por quem guardo certa afeição, e com quem desde o meu princípio mantive íntimos solilóquios, deixou de me incomodar quando compreendi que ser sozinho nada mais é do que ser. Acalanto-o com poesia, Paulo Leminski, Manoel de Barros, com quem se compraz com cara de monstro tolo. Parece amar-me. Tenho-o em boa conta por seu franco amor. Ao primeiro sinal de minha introspecção, vem me buscar pela mão, e anda comigo por onde há alegria ou aridez, feliz como quem traz “uma flor na lapela e uma namorada no braço”.

Há um que até esta noite dormia como um gato na quietude de um crepúsculo de minha alma. Mas agora que volto exausta de uma madrugada de encontros com a face torta das fraquezas do homem, de suas implacáveis razões de ser tristes, de sua inércia congênita e de minhas próprias pieguices, encontro-o tão desperto quanto os outros, a olhar-me do fundo de sua inexpugnável presença. É o da desesperança. Seu olhar de esperança morta me contempla com certa tristeza, mas não se demora a me envolver em um abraço longo, como um amante, a sussurrar em meu ouvido que agora eu sou toda sua, me propondo esquecer para sempre a minha melhor lembrança...
Seus dedos lascivos passearão pelos meus cabelos enquanto adormeço nesta noite em que ele é o rei. Estou certa de que ao despertar, ele, então como um anjo subserviente, mas dono de mim, me trará ainda na cama o café da manhã.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

"O mais triste de um pássaro engaiolado
é que ele parece estar feliz."

Mário Quintana

sábado, 8 de setembro de 2007

A propósito da primavera – embora eu tenha a impressão de que em minha casa entre todos os dias um outono renitente – o amigo Caio, ou Z, como Maria gosta de chamar, veio me emocionar nesta manhã de sábado com um poema deixado na caixa de comentários da postagem anterior. Um poema delicado como as “chuvas suaves” que têm vindo na madrugada prosear com meu sono, como as “andorinhas adejando” pela atmosfera rosada das tardes de minha janela. Eis...


There will come soft rains
Sarah Trevor Teasdale – 1920

"Chegarão chuvas suaves e o perfume do solo,
E andorinhas adejando, com seu canto estridente.
E sapos nos charcos cantando de noite,
E ameixeiras silvestres, trêmulas e pálidas.
Todos vestirão sua plumagem de fogo,
Assoviando suas fantasias numa cerca baixa.
E ninguém saberá que há guerra,
ninguém se preocupará quando ela tiver fim.
Ninguém se importará, seja pássaro ou árvore,
Se a humanidade perecer totalmente.
E a própria primavera, quando despertar ao amanhecer,
Nem suspeitará do nosso próprio desaparecimento."

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

... folhas novas, galhos que se deitam ao sol, luz da manhã nas asas do japiim, o vôo incólume da garça, intrépidos bandos de mergulhões, o rio indeciso entre ir e chegar, uns pés felizes sob a água morna do dia novo, mansas ondas abraçando a pedra nua, um papel branco perdido na alegria do vento, claras nuvens viajando no azul, um gosto de sol menino na boca, a vida em dobro... Ave, setembro!

sábado, 1 de setembro de 2007

Adeus, agosto

Já não era sem tempo que agosto terminasse. Por uma estranha combinação entre as energias negativas do universo, nosso agosto é sempre infeliz. Julho mal se fechava quando começamos a desconfiar de que neste ano agosto não nos surpreenderia com qualquer diferença. E desde o seu primeiro dia sentimos no peito um inusitado desconforto, como se a alma se sentisse estrangeira dentro do corpo e desejasse fugir para outras paragens. E com a alma ameaçando partir, sentimo-nos, por 31 dias, à beira da morte.
Tivemos medo de enlouquecer, como acontece aos cães, e até algumas vezes nos pegamos falando sozinhos, apresentando uma idéia e um argumento para nós mesmos em plena faixa de pedestres! Porque em agosto se morre e se enlouquece. Quando não, fica-se irremediavelmente suscetível.
Pois este agosto foi deveras triste... os pássaros confundiram a estação e perderam o rumo; um poeta morreu deixando um poema pela metade; entregamo-nos pusilânimes a gratuitas crueldades; os paradoxos se tornaram lógicos, e a filosofia daquele que é feliz em companhia da tristeza foi largamente aclamada; a distância entre a palavra e o gesto ficou maior, e as vírgulas invadiram as falas, tornando amargas as que seriam as mais ternas mensagens; os desejos se mostraram indomesticáveis e todas as perdas iminentes; todos os advérbios de modo foram gastos sem retorno; um barco zarpou em busca do mês de abril; nenhuma loucura foi perdoada e não houve abraços que fossem capazes de conter as agitações do espírito; a mentira assumiu o poder, reduzindo as coisas verdadeiras a meras banalidades; e como se não fosse suficiente o caos da espera infinita, do tempo multiplicado, da palavra que perdeu a razão porque não pôde ser dita, “no meio dessa confusão, alguém partiu sem se despedir*”...
Agosto se foi, e nosso coração desavisado ficou meio sem esperança no homem. Mas nestas primeiras horas de setembro já sentimos os ombros mais leves e pressentimos que devagar e sem alarde redescobriremos a confiança envolta na poeira do que passou. Sairemos da casca para receber o sol, como crisálidas. Escolheremos a primeira segunda-feira para nos sentar no banco de uma praça distante, ao crepúsculo, ainda que sozinhos, e nos surpeenderemos de que a vida agora pareça tão leve, apesar de tudo o que em agosto morreu em nós.

*Frase inicial da crônica Despedida, de Rubem Braga.