segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

La dolce vita

Sim, preciso confessar antes de dormir: conheço os ventos encanados de que fala Mario Quintana, aprendi um dia a fazer sapos de papel e depois esqueci, e morro de saudade dos sapatinhos brancos de verniz que usava quando tinha cinco anos. São três coisas doces na minha vida, que entre outras doçuras, me amparam dos eventuais desencantos. A lembrança dos ventos encanados me trazem de volta o cheiro da infância numa casa cujo porão abrigava o fantasma de Nina. O origami entrou em minha vida com a descoberta do amor por um menino japonês, quando tinha 12 anos. Mas esqueci como se arquitetava em papel tão logo o efêmero amor voltou para o Japão. Quanto aos sapatinhos, tinha dois ou três deles, mas era o branco que me proporcionava a ilusão de ser anjo. Não sei por que forças incompreensíveis e infinitas o diálogo com as coisas doces fica cada vez mais difícil, mas ainda se pode ter o consolo de saber que elas continuam existindo. Sei disso porque surpreendi algumas delas nos últimos dias... Numa noite recente, Nilson Chaves cantava no teatro "Noites com sol", do Flávio Venturini, e ao meu lado, um homem que não conheço aparou com uns dedos trêmulos uma lágrima furtiva de cada lado de seu rosto. E eu, que tenho carregado uns olhos secos por acreditar que dificilmente se recuperará a ternura que se perde todo dia um pouco, tive vontade de acender um sol na noite para aquele homem que se permitia emocionar-se com uma canção. Doce.
Neste domingo, depois de ver os filhotes de minha doce Sofia abrindo os olhos pela primeira vez, recebo as palavras encantadas de Margarida C. Primeiro numa visita ao texto "Um ano zen", depois em seu próprio blog, Carnets de Lisbonne 2008, a segunda casa de suas palavras - a primeira é a sua alma infinitamente poeta. "Para Rojanski", diz Margarida, e faz minha alegria ficar acordada até agora, que já nem é mais domingo. Margarida me é doce nesta noite.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Campo de vaga-lumes

Um texto da gaveta, lembrado neste domingo de chuva
em que as árvores gotejam mangas...
Parecia um campo de pequenas flores fosforescentes, ou uma constelação que tivesse descido de sua imensa distância de anos-luz. E era na verdade um campo de vaga-lumes, que se estendia por quilômetros de beira de estrada, iluminando os confins da nossa viagem sem lua.
A foz do rio e a brava pororoca haviam ficado para trás há poucas horas, quando a chuva de todo um janeiro resolveu tombar impiedosa sobre as nossas costas. Em cinco horas de viagem rio acima, embora algumas aves noturnas principiassem a se exibir como se fosse noite, e as capivaras saíssem das tocas faiscando os olhos, e ainda as palmeiras se curvassem sobre o rio, vergadas ao peso da intempérie, encharcados sob o frio havíamos adormecido em nós a poesia. Desejávamos apenas chegar à margem que nos esperava, sonhávamos com um sol que nos desse o conforto do calor pelo resto da viagem.
Então descemos, ao final da tarde, na calmaria da margem pedregosa e palidamente ensolarada do rio Araguari, e depois de um breve descanso pegamos a estrada noturna que nos levaria à região dos lagos do Amapá, passando pelo campo de vaga-lumes.
Era noite quando começamos a ver os pequenos pontos fosforescentes à beira da estrada. Foi quando tivemos, como poucas vezes em toda a vida, a chance de voltar à infância. De mãos espalmadas nas vidraças do automóvel, ficamos ali parados, olhando o espetáculo, como quando crianças olhávamos as coisas que nos hipnotizavam de encantamento.
Um campo, um imenso campo se estendia até onde a vista não alcançava, de vaga-lumes que se moviam como impelidos pelo vento outonal da Amazônia noturna sobre a vegetação rasteira. Pareciam pequenas flores que se esquivassem sutilmente à intenção de colheita. E era o recôndito desejo que guardava cada um de nós: colher, ainda que fosse apenas uma.
Aos poucos, ao passo lento do automóvel cujos faróis rompiam as nuvens de poeira deixadas atrás dos caminhões apressados vindos de Oiapoque, os vaga-lumes – poeira das estrelas polidas por Deus, segundo os indígenas – foram rareando, até que ficaram na paisagem apenas as corriqueiras estrelas, tão antigas quanto o mundo, a nos dizer que um campo de vaga-lumes é pra se ver na vida uma só vez.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

O Amor nos Tempos do Cólera

Por enquanto tenho me contentado em “ouvir falar” sobre o filme O Amor nos Tempos do Cólera, mas tudo indica que meus sentidos não perdem por esperar que o filme chegue um dia ao cinema desta minha província. Meus olhos e ouvidos já se encantam com o trailer, que não canso de reprisar na internet. Antevejo em sonho o que acredito ter saído como resultado da bárbara história de amor de Florentino Ariza e Fermina Daza, personagens inesquecíveis de Gabriel García Márquez, que finalmente entregou uma de suas maiores criações a uma grande produção estrangeira. Algumas de suas obras filmadas anteriormente, como Ninguém Escreve ao Coronel, A Incrível e Triste História da Cândida Erendira e sua Avó Desalmada e A Má Hora – as duas últimas filmadas pelo brasileiro Ruy Guerra – não agradaram de todo ao escritor.
Embora Fernanda Montenegro tenha sido sondada para o papel de Fermina Daza, na maturidade da personagem, “ouvi dizer” que a secundária Trânsito Ariza, mãe de Florentino Ariza, o mocinho do filme, lhe caiu como uma luva, já que ela faz bem tudo o que faz. Outra coisa interessante no filme é a colombiana Shakira cantando La Despedida.
Estou, sim, me coçando pra ver logo o filme, e enquanto ele não mostra a cara por estas paragens, vou relendo trechos do livro. Aliás, de antemão acho que, por melhor que seja o filme, não deverá superar a beleza, a magia e a transcendência do livro mais lido de G. G. Márquez depois de Cem Anos de Solidão. Um trechinho pra revigorar os ânimos enquanto se espera...

“Florentino Ariza não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores contrariados, e haviam transcorrido desde então cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não tivera que manter a conta do esquecimento fazendo uma risca diária nas paredes de um calabouço, porque não se havia passado um dia sem que acontecesse alguma coisa que o fizesse lembrar-se dela”.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Um ano zen

Fernando Pessoa tinha toda razão: “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”. Pois é isto. Acabo de regressar de um período bem curto de retiro para o meio do matão amazônico, onde um rio de águas pacíficas lembra o rio de águas diáfanas de Macondo, onde a casinha de minha mãe parece ter escolhido o melhor lugar sob as nuvens que se desmancham em chuvas todas as tardes, e quase não percebo que outro ano chegou. É um lugar onde não se tem tempo de prestar atenção ao tempo que parece eternizado nas ruazinhas cor de poeira que se arrastam montanhas acima, nas cabeças tristes das vacas que também parecem, desde dez anos atrás, plantadas no mesmo lugar, na chuva que encharca devagar as cercas de tábuas e infesta o ar de um cheiro de terra e minhoca e madeira nova, na enxurrada que arrasta as acerolas e as fezes das galinhas que se ouriçam sob as hortas suspensas. Minha mala, que transportou para lá uns livros “mais áridos do que três desertos”, retorna para casa cheia de saudade desse tempo calcificado onde a intensidade das coisas possui outras medidas, outro gosto e outros verbos. Agora que chego é que vejo que é janeiro outra vez. Mas é tarde: o tempo já tem outro significado. E já que ainda assim as convenções obrigam a contá-lo, trato de consultar logo as previsões para Cavalo neste ano do Rato. Prometem-me um ano zen. Ótimo, mesmo que lá pelas tantas ele se apresente cin-zen-to.