sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A volta do enigma

Reli recentemente o clássico Dom Casmurro, para ajudar minha filha em um trabalho da escola, e voltei a pensar – com aquela estranha ansiedade que dá vontade de mastigar o cotovelo – sobre o enigma de Capitu. Vejam só, com tanta novela boa passando na televisão, eu pensando em Capitu. Todo mundo, até quem não lê, já pensou um dia em Capitu. O Saramago por aí, escrevendo coisas incríveis, seus livros virando filmes, a Malu Magalhães revolucionando a música aos 16 anos, namorando um Hermano, e eu aqui, escrevendo a quarta frase terminada com o nome de Capitu.
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Onde quer que esteja, não tenho dúvidas de que Machado de Assis é uma alma perseguida, porque fez o favor de criar um enigma que persegue indefesos leitores pela vida afora. E continuará sendo, pela eternidade, enquanto Dom Casmurro não alimentar uma boa fogueira. Tá... é só um desabafo. O romance é tão bom que qualquer adjetivo da língua portuguesa pode lhe diminuir a significância. Arrisco dizer que quem não leu Dom Casmurro não viveu... mas vai morrer mais feliz. Ou menos infeliz.
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Pensar sobre o enigma de Capitu é um sofrimento parecido a uma fome que não se pode matar, a procura de uma palavra que foge quando a gente mais precisa escrevê-la, ao incômodo de um cotovelo mastigado. O que me perturba em Capitu não é a possibilidade de ter traído, mas a de ter traído e não ter contado. Mas se não fosse isso não haveria enigma, e Dom Casmurro não seria. Enfim. Com Dom ou sem Dom, infidelidade é perdoável. Deslealdade, sabe Deus, Capitu.
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Portanto, visitante, leitor esporádico ou assíduo... ajude-me a me livrar dessa embaraçosa perseguição do Machado e me responda: Como se chama aquela tartaruga de óculos das historinhas do Maurício de Sousa? Era o Mestre dos Magos o bandido da Caverna do Dragão? Usucapião é uma palavra masculina ou feminina?

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Rehael

Começou a aparecer nos nossos sonhos, e disse-nos se chamar Rehael. Aparecia em forma de andarilho, de artista, de velho sábio, e quase sempre acordávamos tristes da viagem, sem poder saber se um dia o veríamos real. Enquanto era andarilho, levava-nos para os mais recônditos povoados dos sonhos, e nos dizia maravilhas de se ter a solidão de uma estrada sem fim como companhia. Como artista, era único. O melhor palhaço, o melhor Lisandro. E dos mais insólitos tablados que podiam se sustentar tanto em copas de árvores quanto em águas correntes, arrancava-nos aplausos que beiravam as lágrimas. Em todos os sonhos, de todas as madrugadas, em qualquer forma, tinha o dom da potência. No sonho em que nos apareceu como menino, abraçamo-nos ao seu corpo, e com o mais desamparado dos olhares lhe perguntamos por que nos deixava à sorte dos que têm saudades. Desvencilhou-se enigmático, e no sonho seguinte apareceu-nos na forma que nos disse ser a original, do anjo Rehael, da segunda hierarquia dos anjos. Depois de recitar um salmo inédito, prometeu-nos que nunca mais precisaríamos ter saudades. E nos aprisionou no sonho para sempre.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Previsões do tempo


O mar rumoreja inquieto, cantando à areia canções de náufragos, enquanto a estação se finda na lonjura transoceânica dos olhos do poeta que partiu. Hoje não fui às dunas nem esperei por aquela mensagem que parece viajar em um triste e desamparado navio de cargas que jamais chega ao seu destino. Debrucei-me à janela apenas, e até o sol se pôr sonhei com o poeta vindo pela areia branca do dia chumbo, procurando a liberdade de meu exílio e arrastando no braço nu sua poesia vestida de roxo-sangue. Vinha descalço e com os cabelos fluindo em ondas amendoadas pelo sol. Nada mais belo. Nem mesmo o próprio mar, que fluía em ondas de toda cor. O poeta deixava sem culpas seu navio atracado no caos e trazia o verão inteiro preso ao sorriso. No bolso um diapasão para as notas das marés, no peito a tatuagem de uma erva rara do Caribe. E como fosse tão cinza o dia, tinha aberta ao vento a blusa amarela feita com os três metros de poente dos desejos de um poeta da Rússia, que pensava em costurar calças pretas com o veludo da garganta. O meu navio atracava no mesmo caos, meu sorriso eternizado em outonos, meu diapasão do silêncio sob o travesseiro, e o vestido salpicado das ondas de ontem, disfarçadas em chuva. Mas da janela para o mar agora vejo o poeta passar ao largo, prosseguir desenhando pés assimétricos pela areia úmida, tornando ao seu país aquático pelo caminho inverso. Em suas veias pulsam as velas do barco que singra e sangra seu oceano de plumas. Presa ao cais deixa a poesia, e no doce aceno de adeus tem o desejo do ferro devorando a ferrugem, do sim devorando o não.