terça-feira, 29 de junho de 2010

Último conto da estação

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Porque era primavera, a tarde colheu na palma a última andorinha, amansou-lhe a carne, acalantou-a, sorveu-lhe o sangue e enterrou no horizonte sua semente. Foi de lá, do fim do horizonte, onde vive o arco-íris, que o bando de andorinhas recém-nascidas partiu ao encontro do mais fabuloso verão.
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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Stephen in the sky

Dizem por aí que escritor que se preze tem um gato. Um gato que se deita sobre a folha de papel que espera apenas o deitar da palavra. Eu sei que parece história inventada (eufemismo para mentira) mas já tive 15 gatos em casa. De uma vez só. E aqui começa a história de Stephen Fry.

Maria trouxe do colégio um filhote de gato preto. Trouxe-o porque o encontrou vagando pelos corredores, atônito, sem saber em que série estudava. Trouxe-o debaixo do braço. De ônibus.

O gato preto foi recebido com carnaval em casa e passou a se chamar Gato Preto, embora tenhamos logo percebido que se tratava de uma fêmea – que enquanto viveu, procriou três vezes e deixou várias herdeiras. Não é preciso dizer que por essa época ficamos impedidas de receber visitas. Havia gatos morando no sofá. Rasgando o sofá. Mijando no sofá. Gatos de todas as cores possíveis, porque a Gato Preto fazia dessas cachorradas de variar os parceiros.

Foi quando percebi que não mandava mais em minha própria casa – os gatos já dormiam em minha rede, trocavam o canal na hora da novela e usavam meu hidratante – que comecei a doar gatos. Pra quem não aceitava logo, eu dava o gato mais uma nota de 20. Alguns foram assassinados pelo vizinho, que todas as noites se armava de uma cerca elétrica.

Dos 15, sobrou Stephen Fry. Sobrou porque foi devolvido por uma das pessoas que aceitaram a doação. Voltou para casa magro, triste, sem a nota de 20, e se tornou o gato mais importante da história da minha vida. Era branco e cinza, e tinha – creia, por favor – os olhos de Brad Pitt. Foi o maior cafajeste de sua geração em nosso bairro. Não havia gata que resistisse ao seu charme e gato que não lhe quisesse partir a cara. Mas foi também a criatura mais doce da família, capaz de me fazer carinho nos cabelos na hora da sesta – que ele não abria mão de tirar comigo.

Sophia, a poodle, nutria por ele uma paixão desesperada. Por que não? Até onde se via, o mundo deles era o mesmo. Tico-Lyn, o marido da poodle, olhava como se nem fosse com ele. Stephen aceitava, e talvez até correspondesse àquele amor. Libertário, fingia cochilar sobre um livro aberto do Roberto Freire: Ame e dê vexame. Cada dia num capítulo diferente.

Suas sete vidas duraram quatro anos. Faz um que ele foi rasgar sofá no paraíso. Hoje, logo que acordei, bateram à porta. Fui abrir e dei de cara com a saudade de Stephen. Está aqui até agora, tomando café comigo num copinho de geleia.

Sou uma escritora órfã de gato. Todos os dias pratico a escrita, a leitura e a saudade. Às vezes choro pelos meus 15 gatos e por outras razões. Mas são por Stephen Fry as minhas lágrimas mais honestas.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Naquele tempo

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Naquele tempo (disse Jesus aos seus discípulos...). Eu tinha a maior vontade de começar um texto assim, com esta expressão e com estes parênteses, tinha medo de fazer imitação barata de Mario Prata. Agora já fiz e está feito. Mário Prata nem vai ficar sabendo, esse mundo é muito grande. Enfim, naquele tempo, eu era consumida pela vontade de conversar sobre as coisas que lia, sobre as coisas que escrevia... Queimava-me o desejo de abrir o livro que estava lendo, e ler trechos em voz alta para o meu interlocutor, ao que ele poderia dizer puxa vida, que lindo, de onde esse cara foi buscar inspiração pra escrever uma coisa tão louca?... Você não acha que ele pode ter sofrido a influência do fulano de tal ou ter sido tocado pelo movimento tal? E eu, morta de feliz, responderia.

Ou então imprimir um texto fresco, recém-saído da alma pendurada nas pontas dos dedos que o digitaram, e mostrar a alguém que pudesse dizer ao menos eu, hein... que coisa piegas... você já escreveu coisas melhores. Talvez fosse chato ouvir. Mas não tanto quanto jamais receber a opinião.

Utilizei os mais óbvios e os mais inusitados recursos na tentativa de captura de um interlocutor que me satisfizesse esse ardente desejo. E nesse percurso desatinado, encontrei tipos com desejos bem mais estranhos que os meus. Um deles desejava apenas olhar para a lua com a atenção de um astronauta enquanto eu me enredava em impressões sobre as publicações digitais. Outro desviava sempre o assunto para um sonho que lhe era recorrente desde a infância. Um outro ainda apenas fumava, em silêncio, olhando sorrateiramente pelo espelho o jogo de futebol na televisão às suas costas. Eu poderia abrir aqui um breve parágrafo para singulares exceções. Mas não. As exceções me compreendem, porque afinal são exceções.

Aquele tempo passou, porque o tempo, o mais disciplinado dos fenômenos (blablablá...), cumpre sua obrigação de passar, aconteça o que acontecer. E eu sinto muito por ter descoberto, à custa de muito empenho de meus eventuais interlocutores – que passaram vidas tentando me mostrar – o que era evidente desde o princípio: eu sou uma grande chata. Meu vício em literatura é incurável. Eu realmente lamento... Enfio a viola – ou o livro, a folha avulsa, o manuscrito – no saco e saio de cena de mansinho, se o papo não está agradando. Mas naquela vontade nada põe rédeas. Nem a viagem do tempo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Petite danseuse*

Da série Breves Contos

Para Aline

Antes de desaparecer, a pequena bailarina ainda foi vista numa lufada branca de brisa, no gás azulzinho dos cirrus, num raio lilás do sol, rodopiando num perfeito pas de deux¹ com um anjo celestial de seis asas – um serafim. Dizem que nunca fora tão bela como naquela aura de alvura e tules derramada na amplidão. E dizem também que o serafim, apaixonado por seu detourné² e atrapalhado com tantas asas, enredou-se numa nuvem, enquanto ela subia, no mais harmonioso grand plié³, ao último limite do céu. Depois, e para sempre, ainda que os céus se misturassem com a terra, confundindo anjos com pobres mortais, abrindo caminhos entre nuvens de madrepérola para o vaivém dos pássaros e a ciranda das estrelas em plena pátria do ballet, somente ao olhar divino foi permitido testemunhar a dança da petite danseuse.

*Pequena bailarina

1, 2 e 3 – Passos do ballet clássico

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O ponto final de Wilson Bueno

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Quando um escritor morre, coloca o ponto final – definitivo – em sua obra. Mas por maior que seja a obra, sempre me causará impressão maior ainda a sua morte – esse mistério sem tempo, sem idade, sem destino certo. Assim estou hoje, impressionada e triste com o ponto final do escritor Wilson Bueno. Um ponto vermelho, escrito a sangue. O escritor paranaense, assassinado em Curitiba no dia 31, faz parte de uma geração de escritores que enriqueceram ainda mais a literatura brasileira (como Paulo Leminski e Manoel Carlos Karam), e muito certamente terá levado com ele a inigualável irreverência da linguagem. Dele li apenas um livro, Cachorros do céu, e devo dizer que logo percebi o quanto Bueno arriscava na escrita. Sua prosa é fundamentalmente inventiva.

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Wilson Bueno tem livros publicados no Chile, Cuba, México, Argentina e EUA, como A copista de Kafka, Amar-te a ti nem sei se com carícias e Cachorros do céu. Deixou pronto Mano, a noite está velha, ainda sem data para publicação, e deixou triste minha Maria, que tem como tema de sua pesquisa de mestrado a vida e a obra do escritor. Agora Maria tem também o seu ponto final definitivo para estudar. Espero que a partir dele, possa inventar palavras que traduzam a grandeza de Wilson Bueno.

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