domingo, 23 de agosto de 2009

Tsarphatah

Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento. - Clarice Lispector


Esta tarde sonhei com os pães de Bete, a viúva de Sarepta que nunca ficou sem farinha e sem azeite. E quando havia apenas um pouco de farinha numa panela e um pouco de azeite, Bete multiplicava pães que depois distribuía com generosidade a quem fosse a Tsarphatah. Tenho voltado lá sempre, e tenho encontrado o forno apagado. Na porta de Tsarphatah a mensagem resoluta de adeus.

Esta tarde sonhei com os pães de Bete. Era Márcia quem estava em minha cozinha fazendo a mistura da massa, e depois me mostrava sorrindo o pão redondo como uma lua que aprendera a fazer com Bete. Vamos multiplica-los, e embrulha-los em papel de seda, dizia Márcia, iluminada pela presença de Elias, o profeta das viúvas, que nunca deixou Bete só.

Não posso compreender a ausência de Bete, porque nunca pude compreender minha própria fome. Tenho precisado do pão que a viúva de Sarepta preparava. Do braço de Deus estendido sobre a minha cabeça. Da palavra do Messias que falava com Elizabeth enfatizando a letra i de seu nome, como em inglês.

Acordei com saudades de Bete, e meu desamparo foi maior quando bati nas cinco portas de Madame Poison e ela não abriu nenhuma pra eu ver se havia algum pão.

Bete disse um dia que a própria bíblia não dá conta de como termina a história da viúva de Sarepta. Quanto a mim, não posso voltar a dormir em paz sem uma resposta. Bete encontrou uma explicação para a vida?

sábado, 15 de agosto de 2009

Eu no Woodstock

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Se em 1969 eu tivesse uns 20 anos, seguramente teria ido ao Festival de Woodstock. Ainda que pra isso eu precisasse antes passar meses vendendo coxinha, lavando roupa pra fora ou entregando leite nos portões da madrugada, nas ruazinhas esmigalhadas de solidão de minha cidade perdida nos pinhais do Paraná. E ainda que isso só servisse para a passagem de ida.

Por isso acho que nasci na época errada. Se tivesse nascido pelos anos 50, não teria sido necessariamente hippie, mas também não teria perdido a oportunidade de usar saias e cabelos imensos, ou de criar meus filhos como índios, ou ainda andar por aí mostrando pra todo mundo aqueles dois dedinhos mágicos dizendo paz e amor... e de ter ido ao Woodstock, é claro.

Mas não é só isso, que o meu desejo não é tão superficial. Se tivesse nascido nos anos 50, poderia até ser chamada hoje de dinossauro por minhas filhas ultra-jovens, mas não tenho dúvidas de que seria um dinossauro libertário, que traria no sangue, no olhar e nas atitudes a essência do movimento hippie, pois sua essência perdura, a despeito da morte dos saiões, dos cabelões e de todos os símbolos exteriores consumíveis.

Eu sei, eu sei. Não é preciso ter nascido hippie ou ter ido ao Woodstock para se ter ideias libertárias. Mas naquela época era mais original, reconhecia-se um libertário pela roupa, pelo cabelo, pelos olhos, pelo vocabulário... hoje até o mais genial marginal criativo é confundido com o conservador burguês, etcétera e tal, esse papo está ficando caretão.

Se eu pudesse ter engrossado os coros contra o consumismo, contra as guerras e pelo amor, e depois disso ainda ter rolado na lama do Woodstock, dormido no campo do Woodstock, visto luas brotarem das poças d´água do Woodstock e ainda acordado em plena segunda-feira ouvindo Jimi Hendrix no Woodstock... ai, ai. Quem me conhece, não se iluda com uns certos modos clássicos de minha aparência. Aqui dentro existe uma criatura derrubando cercas e vivendo overdoses de chuva no Woodstock.

Eu não vivi o movimento hippie nem fui ao lendário festival, mas como consolo ao meu sonho frustrado e ao calor tempestuoso da noite, quero deixar claro que continuo fazendo o amor e não a guerra, que tenho sobrevivido a toda forma de autoritarismo, combatendo o meu próprio e descobrindo o amor libertário. Ave, Roberto Freire!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ballet

Para Aline
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Deito-me na laje morna junto aos gatos que há horas se entregam lânguidos às próprias línguas. Os fios de luz do crepúsculo escorrem translúcidos sobre os telhados. No quarto fechado, a pequena bailarina ouve Chopin e dança de sapatilha de ponta o seu petit ballet, sem importar-se que umas notas fugitivas do piano escapem por debaixo da porta e venham refugiar-se junto aos gatos. A este sinal, asas brancas dançam nas lonjuras azuis, nuvens dançam fluidas na atmosfera rosada, jovens folhas dançam coladas aos corpos das árvores, enquanto as velhas folhas rodopiam soltas com a brisa. A bailarina vem para a laje, onde há liberdade para o seu grand jeté, deixando Chopin vivo no quarto. Abraço um dos gatos, e num rompante de ternura, penso dançar com aquele cego que não podia ver a primavera em Paris.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Túnel do tempo

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Acreditem: levei 30 anos para aprender a letra de uma das canções que mais me encantaram quando eu era uma pré-moça. Se por aqueles dias alguém com poderes para previsões tivesse me dito você vai saber cantar esta música... daqui a 30 anos, eu teria tido um arrebatamento, uma síncope, uma crise existencial. Como é que eu ia saber o que eram 30 anos adiante? Era a mesma noção que eu teria hoje de 300.

Testei isto em minha filha mais nova, minha pequena bailarina, quando ela pediu pela trigésima vez sua sonhada sapatilha de ponta. Você vai ganhar... daqui a 30 anos! E fiquei esperando a reação. Foi de total descrédito. Os adolescentes não acreditam em nada do que a gente diz... mas fazem menos dramas.

Pois quem imaginaria? Aprender aquela música foi um dos meus maiores desejos, quando meu acesso aos discos, aos aparelhos eletrônicos, à sintonia das rádios era difícil.

30 anos, e assim, quase do nada, pesquisando umas coisas nas veredas do google, me encontro com ela, clara, transparente, com todas aquelas mágicas palavras que fizeram o encanto dos meus 13 anos: a letra. Embora na época eu não percebesse, já era a letra que primeiro me chamava a atenção.

O tempo brinca mesmo com a cara da gente. Literalmente, inclusive. Durante os 30 anos eu não procurei pela canção, embora esporadicamente me lembrasse dela, e nunca mais a ouvi em lugar nenhum. Eu podia ter aproveitado um milésimo desse tempo para procurá-la e provavelmente a teria encontrado, uma vez que eu sempre soube quem é o compositor. Mas o tempo sempre me desviou para outras viagens, outras ideias, outras canções.

Eu devia saber que ela havia de me chegar um dia. Estava escrito. Não preciso dizer que agora a tenho cantado diariamente, envolta numa espécie de espiral do túnel do tempo.

Não esperem que eu diga de que música se trata. Desnecessário. O encanto está no sentido que o tempo lhe deu, no que ela representa para minha vida. Se fosse possível cantá-la pelo blog, então eu a cantaria.

sábado, 1 de agosto de 2009

Despertar em agosto

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Acordei em agosto com desejos incendiários! Ateei fogo às más lembranças, aos sapatos que dão calo, ao vestido que não cabe mais porque o corpo resolveu engordar a revelia. Incendiei o antigo bilhete que conservava sobre a mesa, cujas letras diziam até qualquer dia. Toquei fogo na teoria do acaso, pra não mais aceitar o destino passivamente. Na dúvida, na indiferença, nos farelos de vagabundo que resistiam no lençol. Hoje queimei de minha vida toda forma de pobreza e tudo o que escraviza o ser. A burrice, as máscaras, o paradoxo, o medo da dor. Talvez mais tarde eu queime fogos. Mas agora vou por aí, assobiando uma valsa de Maurice Ravel.