sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Anjo torto


Meu anjo cativo não me chamava mais de Maria, não fazia mais versos nem mais pousava na árvore que nos dias mais felizes do inverno chovia palavras. Quis ir embora antes que viessem as chuvas, antes que as dobradiças da porta de nossa velha casa rangessem ao peso da estação, e sua alma se compadecesse pela casa, e precisasse ficar por amor à casa. Eu disse vai, anjo torto, eu abro a porta para ti. Leva contigo tua mágoa, tua mentira anacrônica, tua preguiça invencível e teu pente de marfim. Vai, com tuas relíquias de cego, teus gestos de náufrago, tua mobília irrisória e o cajado invisível com que tanges teu cão infeliz. Leva a sede congênita de tantas noites insones, tua auréola de barro e os cupins de estimação... Eu fico, com minhas culpas, meus colares de contas, minha alegria roubada e meu medo de dormir. O anjo triste levou minha verdade incompleta, as máscaras da parede e o retrato de um menino entre os jasmins. Teve um olhar desumano sobre a minha confusão, sobre as minhas conjecturas, sobre o meu amargo perfil. Deixou sua sombra corcunda, um poema pela metade, seu itinerário vazio. Era bem sua hora de ir. Disse que estávamos mortos. E eu lhe disse que sim, como quem pudesse dizer o indizível. Saiu com a solidão do seu vício e da rua da sua infância, com a certeza do desamor e o desejo irrevogável de morrer. Deixou-me com minhas vírgulas, minha coleção de adjetivos, tecendo outros na escuridão. Levou o cigarro voraz da hora imóvel da madrugada, seu par de sapatos de corda e o navio libertário que conduzia seu destino em sonhos. Minha alma sentenciada disse vai, anjo errante, eu abro a porta para ti. E o anjo então se foi, arrastando as asas de papelão.

domingo, 11 de novembro de 2007

Porta-retratos

Série Breves


O porta-retratos estava abandonado há dias sobre o divã em sua sala. Nele, minha fotografia de três anos atrás, feita ao acaso, olhar distraído, mas feliz. Mais um dia fora de seu lugar e meu próprio rosto na fotografia poderia adquirir a expressão triste do abandono. Ele entrou com a animação de quem traz um presente, e tirou da pasta sob o braço um documento recém-impresso, cheirando à árvore e tinta. Antecipei um sorriso largo, antevendo o agrado. Como quem se prepara para mostrar uma relíquia, ele arredou o porta-retratos com dedos indiferentes, sentou-se no divã e me exibiu o pedigree do seu cão. O atestado da formidável linha de ancestralidade do seu animal. Olhei para ele com toda a intensidade, mas também com toda a serenidade que podia, e sem a menor sombra de incerteza, recomendei-lhe que o colocasse no porta-retratos.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A solidão segundo o astronauta

Este fragmento do romance A Solidão Segundo o Astronauta, de Joca Reiners Terron, é uma das coisas mais tocantes entre o que tenho lido nos últimos tempos. Deu uma vontade enorme de compartilhar, como um amigo de Nélson Rodrigues, que ao ler Charles Dickens, teve vontade de sair de porta em porta anunciando: “Não espere mais. Leia já o ‘Pickwick’. Quem não leu o ‘Pickwick’ não viveu!”

“Um homem precisa primeiro soltar-se da placenta original, entre nódoas de sangue e lágrimas, em meio aos calores surgidos do atrito ainda desconhecido da pele, e rumar ao sol, à luz inaudita e abrasadora de um sol que cega os olhos inertes e desabituados a ver, para depois de novo ser afogado nas fezes, já liberto e uno, os joelhos sobre a grama dos jardins da primeira infância, gritos de prazer inocentes varando noites e os ouvidos do pai, os inebriantes fedores maternos ocupando todo o espaço em torno e então conviver com os pesares do crescimento, a espinha dorsal despontando ao céu, para assim outra vez estar só, habitando o mundo, solitário, com a vida apenas para si, e depois novamente se unir a outro corpo, em busca daquela dualidade da origem, e misturar-se com ele, para então mais uma vez cindir e se ver sozinho. Na merda.”

domingo, 4 de novembro de 2007

Recado a João

Da série Breves

Basta, João, basta de tocar violão na minha porta. Não quero ouvir mais esses teus acordes mal tocados, porque eles me doem no sangue. Se pelo menos tu soubesses, João, tocar uma promessa de noite enluarada, como consolo às intermitências da solidão. Mas tu só sabes dizer desse amor que não quero te dar, dizer que queres te matar. Pois quanto mais tu tocas menos te quero e mais estou só... E sempre esta música que diz que nunca chegas a mim! Tu não me fazes feliz tocando, João. Pra falar a verdade, tu tens sido o meu inferno. Se quiseres te matar, eu não ligo, mas não é justo que passes as noites trazendo de volta no desvario destas notas as coisas que foram e nunca mais serão. Cala essa tua música doída, porque não posso mais fechar a porta da rua, por onde espero a chegada de um dia melhor. Pensando bem, não te mates. Não te mates nunca, que eu até que te gosto. Apenas não toque mais, João.