segunda-feira, 14 de abril de 2008

Canção da Chuva

Abre as janelas, Maria, que já começa a chuva... Desliga o rádio, a televisão, esquece o jornal com todas as previsões de sol para esta manhã, e vem ouvir a chuva que já escorre sua líquida canção por nossa soleira. Olha as mangueiras como estão caladas, os cachorros que das varandas deitam olhares aquosos para a translúcida paisagem, a cabecinha silenciosa do bem-te-vi que se abrigou no bojo da luminária, o velho que na rede submerge a alma em suas melhores lembranças trazidas pela chuva abençoada.
Abre, Olívia, primeiro as janelas dos teus olhos, onde a luz clarividente antecipa a melodia de cada gota que virá ensopar nosso domingo. Deita aqui, tua preguiça em meu colo, despeja os cabelos sobre o vestido que escolhi para ver a grama lavada, a terra lavrada ao peso da água, da chuva que nos choverá em cada palavra, movimento, suspiro, olhar, em cada brando gesto de tua candura.
Não rodopies assim tua alegria, Júlia, que a chuva se espanta! Não ria do anjo de penas ouriçadas que se debruça à janela à espera do sol. Deixa que ele esconda devagarzinho a cabeça entre as asas e se renda à mansa composição que o embalará para o sono. Serena teus gestos, estende teus braços meninos, sobe nas pontas de tua sapatilha de bailarina e colhe na palma uma gota para mim.
Vem, Maria, em passinhos miúdos ver as folhas secas que já cobriram a varanda, as ardósias afagadas pela enxurrada, que tudo isso é parte da canção. Levanta aos joelhos teu vestido, espicha assim as pernas e teu delicado sopro de vida ao meu lado, deixa molhar na chuva as pontas dos dedos de teu pezinho, nos pingos que se derramam fluidos sobre a verdura. Agora canta, Maria, com todos os teus cristais, esta canção com a chuva...

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Exílio

Eu e meu anjo da guarda conhecemos o sentimento do exilado nesta hora neutra da madrugada. Na janela, junto ao gato que espreitava estrelas cadentes como a vaga-lumes, o anjo lamentava a impaciência da suicida Sophie Podolski, suspirava abstrações de Kafka, “tudo o que não é literatura me aborrece”, e me instigava a adjetivar o inconsumível e onipresente tempo nas páginas deste Lavoura Arcaica que soletro desde o início da estação, em lentos murmúrios, na esperança de que nunca se acabe.
Mas desde o início desta noite, anjo e eu rompemos a fronteira das salas, da sorte e das horas, exilando-nos da vida, para reencontrar, neste espaço transgredido e neste tempo recriado em exílio, a febre da própria vida e a captura do próprio tempo em Raduan Nassar:

“...rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.”

domingo, 6 de abril de 2008

A bela

Último da Série Ensaios Sobre a Ternura

Sua poesia a apavorava: Que bicho da seda teceu tua pele? Em que árvores de que montanha foste colher teus cabelos? De que minas de ouro tiraste tantos dourados? A cada dia um pedacinho dela era um novo tesouro. Desmanchava-se em ternos beijos. A bela enjoou. O queixo dele tremeu como o de um menino quando ela disse que precisava de uns trancos mais firmes, um palavrãozinho de vez em quando, umas mordidas. E como um menino com uma dor, deu um tranco bem firme na porta e não voltou mais.
Ilustração: obra de Joan Miró

O jogador


Série Ensaios Sobre a Ternura

A elegância. O porte. A firmeza das pernas e braços. É ele, sem dúvida. Um atleta ao primeiro olhar. Sorri com a diplomacia aprendida em terras distantes, onde jogou seu melhor futebol e povoou os sonhos das alvas estrangeiras com sua pele mulata e seus olhos verde-mar. Jogador internacional. Ao vê-lo, recordei a reportagem de poucos anos atrás, com chamada de capa, que enumerava as chances de sucesso do moço humilde nascido nas margens do rio, ao lado da foto em que exibia este mesmo sorriso de dentes perfeitos, embora antes mais confiante. É belo, ainda que neste outro uniforme. É ele, sem dúvida. É ele quem me recebe à porta da Estação dos Correios e Telégrafos, onde presta hoje serviços de vigilância.


Ilustração: obra de Joan Miró

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Quimera

Série Ensaios Sobre a Ternura

Quando menino, sonhava com um par de botas e uma capa de chuva colorida, vermelha, laranja, azul, para passear sob as garoas e aguaceiros, brincar de deixar a chuva deslizar pela transparência da capa e respingar-lhe amorosamente o rosto, atolar-se de botas na felicidade das poças argilosas da rua. Quando velho, teve os melhores guarda-chuvas ingleses, as botas do melhor couro compradas no estrangeiro, para usar quando não pudesse evitar a saída. E nas janelas do casarão, cerrava as cortinas para não ver nunca mais aquele menino que lá fora iludia a quase indigência e continuava a brincar na chuva, sonhando com as botas, com a capa colorida, vermelha, laranja, azul...


Ilustração: obra de Joan Miró