sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

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E como não haja mais nada a fazer, uma vez que dois mil e nove anos depois de Cristo ficaram para trás e nunca mais voltarão, entrei em estado de árvore. Contrariando a receita de Manoel de Barros, que diz que para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto, neste resto de dezembro, entrei. Já pressinto o pouso dos passarinhos-mariposas-borboletas. Estou em paz à sombra eventual das nuvens, esperando a chuva de galhos abertos, à mercê dos relâmpagos e temporais, ao sabor dos ventos e dos sóis, e com um desejo enorme de estender-me em doces sombras sobre quem vier, ainda que venha apenas para assistir ao estranho espetáculo do tempo devorando o tempo.
Estou em estado de árvore. Em 2010, bem antes da primavera, pretendo florescer!

Para quem vier enquanto eu não estiver:

"O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos."

Manoel de Barros - O Livro das Ignorãças

domingo, 6 de dezembro de 2009

Doce Delicadeza

Para os vinte e poucos anos de Aretha
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Na última madrugada, a chuva bateu na janela com a serenidade de que só é capaz a própria chuva, e perguntou: Aqui é Doce Delicadeza? De dentro da janela, com um sussurro recém-desperto, a moça respondeu: Sim, é aqui. Então a chuva pediu: Abre a janela... A moça abriu-a devagar para não ferir as faces da chuva, e as duas se olharam nos olhos por um instante ad infinitum. Foi quando a chuva, ainda mirando os olhos cristais da moça, disse: Como posso ter certeza? E a moça, com um sorriso ainda mais cristal que os olhos transcendendo a aurora vindoura, lhe abriu suas delicadas asas de papillon.