segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Frederich

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Na manhã em que seu navio voltou ao porto de origem, Frederich Spassky estava nas tabernas do cais, agarrado às putas que faziam alvoroço em torno de seus olhos azuis e de sua pele curtida pelo sol de muitos mares. Foi abandonado para sempre nestas terras estrangeiras. Primeiro se desesperou, teve vontade de se matar, depois se acostumou, e fez do novo porto sua pátria. Arrumou-se na vida, arranjou mulher, filhos e um barco pesqueiro, embora nunca tenha deixado de pensar na Rússia e em sua amada Narkissa. Não sabe quantos anos tem. Diz ter chegado a uma idade em que não se contam mais os anos, mas se continuam a descobrir muitas coisas. Descobriu, por exemplo, onde é o lugar mais longe do mundo: a terra estrangeira. Frederich circula pelo cais com a desenvoltura dos experientes marinheiros e ainda ajuda a alimentar o mercado clandestino de ervas. Numa noite de cantorias na praia, chegou-se à nossa roda vestido de branco e com um sorriso trazido da juventude. Pediu um pouco do vinho em troca de um poema e nos fez a alma ferver de êxtase quando recitou Maiakovski em russo. Ontem me disse ter sonhado que atravessava um mar de tulipas amarelas. Hoje se demorou mais em seu aceno quando me viu na janela. Fiquei triste olhando ao longe sua cabeça branquinha, acesa pelo sol do cais. Frederich Spassky sabe que está prestes a encontrar o navio que levará a todos a uma pátria única.

domingo, 20 de setembro de 2009

Das coisas de ser

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Então comecei a ser coisa. De passagem pelo setembro acanhado de incertimentos, carregava perguntas nas cordas das sandálias, preguiças penduradas nas pontas dos dedos, delicadências nas raízes dos pêlos. E a ilusão de que havia silêncio nas pedras. O vento me oferecia uma cadeira à sombra de violetas, e ali a morte vinha dizer que o tempo tem cor, zombando da minha descompetência para ver a cor que me teve a infância. Era assim que eu repetia os crepúsculos. Sintomas de solidão até a luz dos vaga-lumes. Do tempo que passo em estado de coisa, me acostumei a ser coisa... pedra gozando vento, pétala à flor da água, grão de areia brotando em vegetal, voz de grilo na trilha da noite. Quando me vier o anjo perverso que se ocupa em me esvaziar em desertos, me dirá mais uma vez que vou morrer na vigésima quinta hora mais oblíquos minutos. Não me causará mágoa porque agora me sinto coisa em minha postura e deseternidade. Poderá me encolher em desfolhamentos se assim eu for folhagem. Sendo pedra, lhe direi um sorriso mineral, varado de amanhecer. E pássaro em repouso, um olhar breve que se amansa em nuvens. Acostumei-me a ser coisa, e quando a nova manhã soprar a lufada de céu sobre meu rosto, quero apenas ser terra que germina outras coisas num dia inventado de azuis.

domingo, 6 de setembro de 2009

Diálogos impossíveis

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Aos domingos eu fuço gavetas. Nem sempre encontro o que quero, mas às vezes encontro coisas possíveis, como estes diálogos impossíveis, exercícios de um tempo improvável.

I
- O que você pensou antes de morrer, Ferdinand?
- Pensei na vida...
- Passou um filme?
- Sim... de toda a vida.
- Só acontece com os suicidas?
- Isso eu não sei...
- E se eu me matasse?
- Pra ver o filme?
- Sim.
- Me deixe quieto!

II
- Se você queria me impressionar...
- Desculpe...
- Não devia ter ficado reparando...
- Eu já disse desculpe...
- No meu modo de comer.
- Mas eu percebo a velocidade de tudo...
- Ah...
- E você come a 360 quilômetros por hora.
- Fala sério!
- É científico. Você devia saber...
- Pra mim chega!
- Que um estudante de Física tem esses vícios.
- Eu vou embora...
- Ah, fica... você é tão inteligente, tão oculta...
- Tchau!

III
- Querido, o que quer dizer intermitência?
- É quando uma coisa só acontece em intervalos.
- Grandes intervalos?
- Pode ser.
- Como o sexo?
- Que sexo...?
- Da gente...
- Que livro é esse que você tá lendo?
- As Intermitências da Morte.
- Por que você não vai ler outra coisa?

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Minha vida com Johnny

Cansei da vida ao lado de Johnny Depp. Estou decidida a abandoná-lo. Sentirei falta de passar seus ternos risca de giz, de escovar seus chapéus, de lhe dar banho quando acorda triste porque Tim Burton não telefona há dias. Terei saudade de quando me arrebata em pleno canteiro de samambaias, implorando que o chame de Don Juan de Marco, mas não posso mais suportar suas crises de identidade, as ocasiões em que exige carnes sangrentas na mesa do almoço, rum na hora do chá, em que sai à rua com os cabelos desgrenhados e uns terríveis olhos contornados de preto, dizendo agora tragam-me o horizonte. Nestes dias, se não o chamo de Jack Sparrow ele não atende. É um excêntrico galante, riem com simpatia os bajuladores. É um exibicionista ordinário, penso, convicta. Mas lhe sou grata por nunca ter acordado com crise de mãos de tesoura.
Não fiz segredo de que como Chapeleiro Maluco ele está a cara do Elijah Wood, e desde este episódio resolveu me dar o troco, como se eu fosse a culpada: comprou um corcel 74, azul piscina, equipado com potentíssimo equipamento de som, que anda exibindo de porta-malas aberto na frente dos bares onde estão meus amigos. Compreendo sua estratégia, mas respeito mais a minha. Digo-lhe você só me faz vergonha, Johnny Depp, e ele vai dormir como um menino, se sentindo vingado.
Hoje atravessou o dia desejando matar o Gato de Cheschire, de quem morre de ciúmes. Diz que não pode mais tolerar o riso do felino, e mal percebe que não posso mais tolerar seus desmandos. Jamais lhe darei a chance de me dizer primeiro nós dois nunca teríamos dado certo, mas receio que o abandono lhe atrapalhe a estreia de Alice... Antes isso, porém, do que amanhecer qualquer dia como uma noiva cadáver.