segunda-feira, 31 de maio de 2010

Hoax

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Uns pares de anos atrás circulou pela internet uma carta de despedida atribuída ao escritor Gabriel García Márquez - segundo a carta, à beira da morte. Eu fui uma entre os leitores que se debulharam em lágrimas, mesmo sem ter lido a carta, pois conhecia que o escritor estava em tratamento de um cancro linfático. Os leitores mais atentos duvidaram que GG Márquez tenha escrito um texto tão sentimental. E não estavam errados. A carta foi escrita por um ventríloquo mexicano para um espetáculo chamado La Marioneta. Quem jogou na internet o texto sob a culpa de GG Márquez só Deus sabe. É o que em inglês se conhece por hoax. Um embuste, ao pé da letra. Para encerrar a conversa em que lamentou a repercussão da carta, o escritor disse: "Mais valia morrer com um cancro linfático do que ter escrito uma carta de despedida daquelas". Ele não é genial? E melhor que isso: se curou do cancro e está vivo!
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Primeira parte da carta: Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Por aí se vê a enrascada em que meteram o Gabo.
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Por falar em hoax, alguns orkuts trazem no perfil um texto atribuído a Clarice Lispector que deve ter feito a escritora virar do avesso no túmulo. Não lembro agora como é. Nem quero lembrar. Eu mesma já andei publicando por aqui um poema que todo mundo dizia que era do Maiakóvski , poeta que admiro desde antes de nascer. O poema é do Eduardo Alves da Costa, se chama No Caminho com Maiakóvski, e este sim, é tão belo que deve ter feito Maiakóvski suspirar no túmulo...
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Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Antes que eu me esqueça...

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- Conheço pouco das escritoras brasileiras. Resolvi então dar mais atenção a livros escritos por mulheres. Foi assim que conheci Adriana Lunardi, Zulmira Ribeiro Tavares, Maria Valéria Rezende... até aqui. Quando terminei a leitura de O Vôo da Guará Vermelha, desta última, corri para a estante da sala de leitura da escola onde trabalho e tomei sofregamente contra o peito O Outro Pé da Sereia, de Mia Couto. Levei-o pra casa (clandestinamente), alisei bastante sua bela capa antes de começar a ler, e ao princípio do primeiro capítulo já me encantei por completo. Ao final do capítulo, apertei-o novamente contra o peito ardente de paixão, e pensei comigo: como escreve bem... Mia Couto... que sensibilidade! E me joguei de cabeça na segunda orelha, ávida por ver a foto de Mia, conhecer os olhos, os traços faciais da escritora. Bem, basta ser um pouquinho mais antenado do que eu pra saber que Mia Couto é um homem... Um escritor moçambicano (ou quenho?) de sensibilidade comparável a Gabriel García Márquez, que escreve livros cujos títulos são o suficiente para impulsionar a leitura. Foi o caso de O Outro Pé da Sereia. Claro que agora vou até o fim. Com as mulheres eu continuo depois.

- Estou pensando em embarcar numa viagem mística para a Índia...

- Um filme para rever sempre: Diários de Motocicleta, de Walter Salles. Gael Garcia Bernal não tem cara de Che, mas convence porque é um excelente ator. Além de emocionante, o filme é engraçado. Próprio para os finais de semana em que não se quer ver nem a própria cara. Um filme para ver uma vez só: O Quarto Verde (La Chambre Verte), de François Truffaut, que antes de fazer o filme ouviu uma música do Zeca Baleiro e gostou particularmente de um verso que diz é mais fácil cultuar os mortos que os vivos. O filme, de 1978, é esquisito. Quer uma opinião mais refinada, afinada sobre os filmes? Não é aqui. É no blog Dicionários de Cinema (blogspot).

- ...ou ficar por aqui e me iniciar no Daime...

- Do Prêmio Sesc de Literatura 2010, categorias Conto e Romance, não podem participar autores que já possuam publicações nestas categorias.
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- ...antes que a vida termine.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Viagem insólita

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No dia em que resolvi desancorar das palavras tortas, achei que tinha que ir pra bem longe de tudo o que me inspirasse desassossegos: sol do meio-dia, excesso de sal, gente que não sorri, livro com traça... Tomei a última arca, conduzida por Noé, neto de Matusalém, e por um destino de nuvens diáfanas, fui tentando levar um papo esclarecedor sobre o destino do homem na margem do próximo final do tempos. O que tu achas, Noé, que aconteceu com o homem desde o último fim do mundo? Noé disse que não sabia de homens, só de bichos. Noé, que em sua arca só transporta bichos, concordou em me levar naquela viagem porque me achou parecida com um. Com um gato? Perguntei. Não, disse Noé. Com uma garça? Insisti, cheia de esperança. Também não, disse ele, já com vontade de me jogar de dentro da arca. Que eu falava demais, que estava mudando de ideia sobre eu parecer bicho, que na sua idade (ele, que no dilúvio tinha já 600 anos) não tolerava tagarelice... Viajamos em silêncio rumo ao infinito, passando pelos portões do céu, fechados, pelo portal do inferno, de portas escancaradas – como a casa da mãe Joana – até o limite de minha paciência, quando enfim resolvi perguntar quem, afinal, era meu par naquele raio de arca onde só havia casais de bichos. Foi quando Noé pareceu se tocar. Pensou um pouco, e como um cara que teve sua história contada no Gênesis e no Alcorão jamais aceitaria a humilhação de não ter uma resposta, disse: Dá um tempo... o mundo nem tá acabando. A gente só tá dando uma voltinha. Sei, eu disse, pra encerrar o assunto, e enquanto Noé manobrava a arca em retorno ao Monte Ararat – de onde nunca devia ter saído naquele dia, pra variar fiquei olhando pras nuvens. E lá estava, sobre elas, o Arco da Aliança, símbolo do pacto de Deus com Noé, compromisso de Deus de se lembrar sempre de todos os seres vivos sobre a terra. Voltei pra casa com a esperança renovada, pensando na vida, na inutilidade de se incomodar com coisas pequenas: pão com formiga, talo de alface, fogos de artifício aos domingos... pensando por onde andará o bicho que será meu par na próxima viagem.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Se bem me lembro...

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Quando Clarice Lispector morreu, na manhã de dezembro de 1977, fazia uma sexta-feira formidável. Eu tinha sardas que se abriam como flores quando o sol no rosto, pernas brancas como mandiocas recém-descascadas e uma recôndita vergonha de ser polaca. Talvez colecionasse piolhos. Não sei. Mas tinha sobre os outros a vantagem de já ter ouvido falar em Clarice Lispector. Nada, entretanto, que alguém visse como vantagem. Clarice se foi quando era a hora da estrela e eu ainda chorava sobre o túmulo de Elvis Presley.
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Naquele dia voltei da escola mais cedo, fugindo de uma ameaça de morte durante o recreio. O menino que me prometera um soco no estômago para a hora da saída era o mesmo que quebrava as vidraças da escola a pedradas, que assaltava os que possuíam lanche, que não gostava de ser olhado de frente – e este foi o meu delito. Voltei pra casa pela sombra das paineiras das alamedas desertas de Salto Santiago, colhendo furtivamente dos quintais alheios folhinhas de hortelã para o chá da tarde.
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Como me lembro disso? Todos os dias de dezembro eram formidáveis na primeira infância. Todos eram como a véspera do Natal e em todos eles havia a promessa da primeira bicicleta. Eu sempre voltava da escola pela sombra das paineiras, sempre furtava folhas para o chá e era constantemente ameaçada pelo menino louco.
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Pois na manhã em que Clarice morreu não foi diferente. Havia sol, havia vento, e havia uma paisagem magnífica enlaçando meus ombros. Não sei como, mas neste tempo improvável eu já sabia que a paisagem sempre transcenderia o que se olha. Não tinha a menor noção do que acontecia no resto do mundo – e o resto do mundo era o que sobrava depois do meu, mas já colhia daquelas caminhadas solitárias sentimentos que não tinham nome.
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Soube do fim de Clarice um tempo depois, e ele não me chegou a ter importância, pois só lhe conhecia o nome, não podia ainda lhe compreender a alma. Também tempos mais tarde o menino louco me acertou o estômago, num dia cerúleo em que eu colhia a felicidade clandestina de furtar mudas de manjericão. Levei outros socos ao longo de outros caminhos e um dia consegui dar nome aos sentimentos que povoavam as caminhadas dos meus sete anos, mas nunca deixei de olhar ninguém de frente. Precisei, porém, conhecer Lunardi*, 32 anos depois da morte de Clarice, para entender, finalmente, que naquele tempo, embora pálida e avoada, eu já pertencia à Ordem dos Corações Selvagens.
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*Adriana Lunardi é escritora, autora do livro Vésperas, entre outros tão belos quanto.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Assassinos sem lágrimas

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Em As Lágrimas do Assassino, há três noites em minha cabeceira, a escritora Anne-Laure Bondoux conta que enquanto o menino Paolo espera, com a língua pra fora, que os pingos da chuva venham lhe encher a boca e furar a vastidão de poeira de uma terra desolada no fim do mundo chileno, no interior da casa, Angel Allegria, um assassino frio e desprovido de qualquer humanidade mata os pais do menino a facadas e deixa seus corpos estendidos no chão de terra batida. Quando Paolo entra, encharcado de chuva, o assassino ainda segura firmemente a faca, mas um sobressalto de consciência o impede de pôr fim à vida do menino também. Criança eu nunca matei, diz Angel Allegria. Nem eu, responde o menino Paolo. Nem na literatura os assassinos matam crianças. É penoso demais pensar que na vida real há assassinos que o fazem. E tão perto da gente.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Crônica pra cachorro

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Ainda não consegui alcançar a filosofia da frase de Ovídio que diz “se os bichos falassem, nada diriam”, mas acho a frase um espetáculo. Tenho um enorme encantamento por bichos, e acho que o fato de não falarem com palavras foi muito bem pensado pela natureza. Quanta poesia comunica um cachorro de olhar manso para o crepúsculo, ou o de olhar sereno que parece confundir estrelas com longínquos vaga-lumes. Quanta poesia num cachorro que silencia para os latidos da madrugada, indiferente ao abandono, feliz com a própria solidão... Num cachorro que espera o dono morto de vergonha (o dono) na porta da escola. Falar pra que? É isso, Ovídio?
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Eu nunca passo por um cachorro sem cumprimentá-lo. Reconheço em todos extrema simpatia, por mais ferozes que possam parecer ou por mais medonhas que sejam as piras dos abandonados. Quanto a certas pessoas, não me lembro de onde conheço, se ao menos conheço, por mais interessantes que possam parecer. A dúvida toma tempo, passo em frente... tarde demais pra cumprimentar.
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Se eu tivesse nascido cachorro, seria um cachorro que comeria massas. Se não me dessem massas, seria um cachorro infeliz. Se tivesse nascido cachorro, gostaria de me chamar Lilih, com toda a doçura desta sonoridade e com toda a frescura que o h lhe empresta. Se me dessem o nome de Bolinha, seria um cachorro rebelde, onde já se viu, do alto de minha superioridade de cachorro manso, livre e levemente taciturno, me chamar Bolinha... Dormiria em folhas secas e ficaria olhando os navios no cais, com vontade de partir. Seria um cachorro pensativo sobre os nadas que garantem a possibilidade de filosofar sobre a vida.
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Sem dúvida, em alguma encarnação perdida por aí, eu fui cachorro. Embora gostasse mais de ter sido um gato seráfico e esquisito, um gato de todo encantamento e de inaudito miado brando*, um gato com postura de esfinge, em cujos olhos fosforescentes um chinês pudesse ver as horas, e que preenchesse de elegância e enigmas os versos de Baudelaire.
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*Do poema O Gato, de Baudelaire (que amava os gatos).

terça-feira, 4 de maio de 2010

Minha casa

Zeca Baleiro

É mais fácil cultuar os mortos que os vivos
mais fácil viver de sombras que de sóis
é mais fácil mimeografar o passado
que imprimir o futuro

Não quero ser triste
como o poeta que envelhece
lendo maiakóvski na loja de conveniência
não quero ser alegre
como o cão que sai a passear
com o seu dono alegre
sob o sol de domingo
nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda

Quero no escuro
como um cego tatear estrelas distraídas
amoras silvestres no passeio público
amores secretos debaixo dos guarda-chuvas
tempestades que não param
pára-raios quem não tem
mesmo que não venha o trem não posso parar

Vejo o mundo passar como passa
uma escola de samba que atravessa
pergunto onde estão teus tamborins
pergunto onde estão teus tamborins
sentado na porta de minha casa
a mesma e única casa
a casa onde eu sempre morei