segunda-feira, 27 de abril de 2009

Quadro silencioso

Da série Breves Contos


Posto à margem pelos cachorros da casa, o gato dorme impávido sobre o dicionário aberto na mesa, a pata delicada e branca pousada na palavra segregacionismo. No canto oposto da mesa, as formigas devoram o doce esquecido pelo homem. A postos, os cachorros esperam que o homem venha abrir a porta para a corrida festiva nas ruas povoadas de folhas e odores de outros cães. À margem da vida nas alamedas do outono vindouro, o homem dorme incólume sobre o livro aberto na cama, a mão envelhecida e pálida abandonada num conto de solidão.

terça-feira, 21 de abril de 2009

O último dia da primavera

Da série Breves Contos

Não sei como ou quando, mas voltarei para ver os estragos da tempestade que deixei na cozinha onde preparei a poção, no guarda-roupa onde escolhi o melhor traje para a viagem. Levo um cálice de cristal com o líquido verde-azul, o canudo de prata e os sapatos mais leves ao admirável tempo novo. Não deixo nenhum recado, para que vejam que eu apenas não me preocupo. O tempo passará depressa até que saibam que escolhi o terraço mais alto para este último dia da primavera. Quando enfim me encontrarem, ainda haverá luz nas alturas da tarde e estarei luminosa em meu vestido de arco-íris, indiferente a todos eles, mergulhando o canudo de prata no cálice e soprando na janela infinita do crepúsculo inumeráveis e translúcidas bolhas de sabão.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

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Meus livros fazem fila para ir comigo ver os crepúsculos de abril. A cada dia levo um diferente, que mal pode disfarçar seu contentamento no calorzinho sob o meu braço.
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No primeiro dia levei um exemplar de bolso de poemas de Manuel Bandeira, escolhi uma beirinha de rio, sentei no chão e o coloquei ao meu lado... Pensava em abri-lo tão logo acostumasse meus olhos à paisagem, tão logo falasse umas palavrinhas com o rio e com os mergulhões que iam passando para o lado das ilhas - que eu não sou do tipo que ignora os bichos e os minerais - mas veio um vento cheirando à floresta, confundiu meu cabelo com folhagem e abriu o livro na página que bem quis. É este o poema que o vento quer, pensei, e fiquei por ali, lendo baixinho, no ritmo dissoluto das ondas.
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Ao longo dos crepúsculos fui levando Pablo Neruda, Cecília Meirelles, Alcy Araújo, Maiacóvski... de modo que cada crepúsculo teve o gosto da sierra, dos canteiros, do cais, da revolução.
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Hoje passeei com Rubem Braga, a quem sou fiel com a felicidade da moça que junto dele fica bestando na areia onde o sol dourado atravessa a água rasa. Na mesma beirinha de rio li Conversa de Abril, para que ouvissem as nuvens e uns tantos pares de asas: Eu pensarei em coisas longe; me perdoareis, porque na verdade vos levo comigo nessa dança triste...
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Sim, nessa dança louca nem As Coisas me escapará. Para o próximo crepúsculo, Arnaldo Antunes já está a minha espera.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Oh, efeito!

Uma brincadeira com Rondó de Efeito, de Manuel Bandeira - que há de me perdoar.


Olhei para ele com toda a ternura,
Disse que ele era lindo,
Que ele era brando,
Que ele tinha o toque de um deus:
Não fez efeito.

Virei vampira:
Usei cabelos vermelhos,
Batom de absinto - afrodisíaco,
Prometi uma rosa escarlate entre as pernas,
Sexo neotântrico,
E disse que o dele era de todos o maior.

À toa: não fez efeito.

Então encarnei a intelectual:
Ele era o elemento fundamental da minha fórmula,
Falei eu te amo em Armênio,
em Sânscrito e em Albanês.
Escrevi,
Recitei,
Desesperei
E comi a página onde havia a Canção das Lágrimas do Pierrot.
Decorei doze poemas de Flores do Mal para agradar seu gosto por Baudelaire,
E para boquiabri-lo de admiração, teorizei sobre o kama Sutra, (a literatura do desejo, por tal forma envolvente, que homem nenhum pode tocar no assunto sem ter copiosas ereções...)

Perdi meu tempo: não fez efeito.

Que sujeitinho insensível!
Foi uma antítese na minha vida,
Quase um anti-tesão.
Mas ainda mato sua indiferença:
Vou lhe enviar por email
Em arquivo descompactado
A fotografia do meu novo deus.
Nu.

É impossível que não faça efeito!

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Se eu estiver ausente
é porque estou ocupada
com o testemunho ocular
dos crepúsculos de abril...

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