domingo, 16 de novembro de 2008

Nina


Série: Pandora


Nina colheu a loucura da caixa de Pandora...


Eu vejo o tempo sentado à minha porta, esperando que eu passe. Não me olha, não levanta a mão num de seus gestos de sábio, nem nunca ameaçou lançar-se sobre mim como a pantera da ingratidão para me devorar a doçura, minha única herança. Mas também não me parece ter complacência, e um dia, quando eu estiver bem perto, apenas me apontará um dedo sereno anunciando o fim já esperado. Enquanto ele me espera, escrevo-lhe a carta de despedida, sugiro-lhe urgente resposta porque não posso mais vê-lo ali na sua imobilidade de guardador das coisas que ele não ama. Porque o tempo simplesmente não ama ninguém. Quero saber dele quanto dura o nunca mais, quantos sóis dura um amor, em que parte da viagem ficou perdida a esperança, ficou perdido o meu nome, o desejo de ser uma mulher azul com asas de anjo, que tivesse um coração de pássaro, que respirasse saudades e cantasse ternas reticências... Ele não vai responder. Nem por isso vou odiá-lo. Vou fazer coisa pior: vou passar bem devagar e deixá-lo ao castigo da espera.

domingo, 9 de novembro de 2008

Hilda

Hilda colheu o trabalho da caixa de Pandora...


Tenho uma necessidade estranha de dizer milhares de palavras todos os dias. Muitas mais que as sete mil da média das mulheres. Não posso suportar meu próprio silêncio. Por isso fui trabalhar no rádio. Tenho de manhã um programa de leitura de cartas de amor, de ódio e de problemas sexuais, um de música de tarde e outro de esculhambação de noite, que é o que eu mais gosto, porque dá pra falar o que quiser. Não tem censura nem hora pra acabar. Eu aproveito pra dizer que o Che Guevara era só um terrorista, que queimar um incenso é a mesma coisa que fumar três cigarros, que o ponto g é mais pra fora do que se pensa, que a chuva de meteoros do céu da Bulgária é ficção, que o livro A Boa Terra ensina como se fumar ópio, que o Elvis está pra morrer pela terceira vez... E também faço umas perguntas para os ouvintes, tipo: eram os deuses astronautas? Eles respondem as coisas mais loucas, que eu leio no ar. Hoje vou encerrar o programa da noite com a pergunta para um ouvinte que adora Tracy Chapman, que me ouve a noite inteira e só falta andar de dia com o radinho de pilha no ombro: Baby, can I hold you tonight?