segunda-feira, 29 de junho de 2009

Considerações sobre o nada

A formiga adivinha a linha que leio no centro da página e percorre as letras em disparada, até a palavra poeira. O que quer me dizer? Pra sacudir a poeira? Pra deixar a poeira sentar? Formiguinha infame! No mínimo, levantou minhas poeiras passadas. Se pelo menos tivesse parado na palavra acordeão, telúrica, ou vento... Como se quisesse desculpar-se, ou responder às minhas indefinições, ela corre para o meio da linha seguinte e fica descansando sobre a palavra nada. Fecho o livro? Ou a deixo continuar provocando minha incrível disposição para os pensamentos inúteis em plena manhã de segunda-feira?

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Aventura

Às vezes acho Macapá uma cidade estranha. Noutras tenho certeza. Meus leitores daqui me compreendem. Os demais devem limitar-se a visualizar a situação, e jamais pensar que Macapá é o fim do mundo. Só a quem é daqui ou mora aqui há 23 anos é permitido pensar isso. E a gente aproveita esse privilégio pra pensar coisas bem piores.

Resolvi me aventurar no domingo à noite em busca de um hambúrguer. A pé, porque calculei que a barraca da esquina estaria à minha espera. Não estava. Sempre em frente, como o Legião – e evitando a direção da beira do rio, onde a metade da população passeia, come churros e corre atrás de crianças tresloucadas no domingão – andei quase um quilômetro sem encontrar o hambúrguer. Um cheese banana, então, nem pensar.

Costumo pensar muito quando caminho – tem gente que fala sozinha, chuta pedras, apedreja cachorros – e ia pensando em como é interessante que sejam as perguntas, e não as respostas, que movem o mundo, quando dobrei a esquina da Padre Júlio com a Tiradentes e dei de cara com uma multidão parada na calçada. Assim, depois do nada. Uma multidão.

Eu não sei o que aquela gente toda estava fazendo ali, imagino que esperando por uns 15 ônibus, mas nem é isso o que me interessa. Foi o susto de ser engolida por uma multidão que olhava na direção contrária o que me fez sentir meio perdida, com a sensação de estar numa cena do Expresso da Meia Noite, ou de ser observada por todos: pelo rapaz que cantava eu vou fazer um ie-ie-iê romântico, pela grávida escorada no poste, pela mulher que assustava o filho dizendo que lá vinha o homem do saco (embora todo homem tenha).

Passei, e nada do sanduíche. Pra resumir, depois de dar mil voltas, encontrei uma barraca numa praça erma, a da Conceição... não porque seja distante, mas porque a falta de iluminação e o mato crescido a tornam desolada. Sua única beleza hoje é ter hambúrgueres para quem tem fome.

Voltei comendo o sanduíche pela rua, evitando pontos de ônibus com multidões, esquinas escuras – nunca se sabe onde se vai dar de cara com o homem do saco – e pra minha surpresa, ao dobrar outra esquina, fui surpreendida com a boca cheia de sanduíche por uns 30 fiéis da Comunidade Cristã de Macapá (pertinho da casa do falecido Brow), que tentaram me arrastar para aceitar Jesus.

Eu aceito, eu aceito! Mas primeiro me deixem terminar de comer, disse a eles, e em sua primeira distração, empreendi a fuga. No próximo domingo à noite, vou ficar em casa, vou comer as sobras do almoço. Se tiver.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Madrigal da manhã

Da série Breves Contos
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Atravesso a cavalo por entre os tanques de guerra encalhados em trilhas de sangue sobre o asfalto, deixando para trás o rio que corre em pororocas para o mar, arrebatando ilhas e submetendo árvores. Os abrigos subterrâneos esquecidos foram tomados pelas raízes das mangueiras apedrejadas desde a criação e pelas garrafas vazias que percorreram bueiros em busca do rio que procura o mar. Procuro a montanha que em verdade não há, porque não posso conter o galope. Nas ruas, rebeldes disfarçados de piratas enforcam animais de pelúcia e saqueiam os corações das mulheres. Mágicos trajados de soldados da paz arrancam dos quepes pombos macambúzios que se abalam rumo à montanha que não há, surpreendendo os mendigos que seguram rosas entre os dentes devastados. Nos salões, os generais dançam tango, embrulhando sua nudez em toalhas de linho, calçados com os scarpins das mulheres, enquanto os cães urinam nos mocassins e devoram na mesa o banquete intocado. Estendido numa calçada, um exemplar do Le Monde exibe a fotografia dos hipopótamos mortos pelo antraz que apodrecem nas ruas em Uganda. A manchete diz que a África não possui dólares suficientes para enterrar os cadáveres. Soterrado pela animalidade, salto do galope com destino ao limbo, derradeiro abrigo, onde poderei ser pós-humano. Acordo às seis, pensando em Gerineldo, que um dia percebeu o vazio da guerra e foi envelhecer na varanda, olhando a chuva.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O leite derramado

Ainda ontem, quando vi dois mergulhões viajando em direção às ilhas - embora todos os dias eu veja - percebi que janeiro, fevereiro, março, abril e - pasmem - maio já ficaram para trás. É que os mergulhões batiam as asas de um modo indiferente, como se achassem que em junho não há poesia. Não brincavam no ar rosado da tarde no rio Amazonas, como faziam até o mês anterior: simplesmente voavam para as ilhas, consumando o tempo.
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Perdoem-me pelo simplismo de começar falando em passarinho... é que não encontrei nada mais leve que o vôo de dois pares de asas para dizer que a carga de quase seis meses mal vividos está esmigalhando minhas pobres costelas. Quando me dei conta de que estamos em junho, tive vontade de olhar nos olhos de cada caminhante do parque e perguntar em franco desespero: você acredita?
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É tarde para colher a esperança fresca do novo janeiro, para esbaldar-se nas alegrias de fevereiro, ainda que tudo acabasse na quarta-feira. É tarde para amansar o coração sob as chuvas de março, para tomar um dos navios que partiram em abril levando cães clandestinos e amores extraviados, ou ainda ver os anjos dançando cirandas em torno de Maria em maio... é tarde.
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Mas ainda dá tempo de colher mansas chuvas que estendem desertos na madrugada, de ler o Leite Derramado, do Chico Buarque, sem chorar o leite derramado. Dá tempo de dobrar uma esquina e dar de cara com a primavera que virá, trazendo quem sabe o aviso de um novo amor em seus ventos de rio, tempo para ouvir os sonhos de Júlia, o riso de Olívia, as canções pacifistas de Bob Marley. De confiar na reconciliação entre os povos e descobrir que "é preciso não se recusar à vida", antes que a morte, entre outras tantas coisas...
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E antes que os meses vindouros comecem a pesar também sobre os ombros, voltemos a falar em passarinho... há um bem-te-vi me esperando no galho encostado em minha janela.