domingo, 29 de março de 2009

Inventário das coisas

Desde o amanhecer que percorro a casa à procura do que tenho. Tenho muito, pareceu-me até aqui. Ninguém no mundo precisaria ter tanto. Não é necessário ter todas as coisas que tenho para compor uma vida. Se não as tivesse, poderia ser até mais feliz... Mas tenho, e preparo o inventário, pois sonhei que logo estarei perdida no silêncio cósmico das noites sem lua.

O primeiro item do inventário: pressentimentos. Tenho-os em abundância, e só me são úteis para pequenas inutilidades como saber que no fim da tarde ouvirei o tilintar antigo do sino do carrinho de picolé. E quando na tarde o carrinho enfim passa, me traz uma profunda saudade de Ezequiel, que amava os picolés de tangerina e que morreu criança, bem no meio de minha primeira infância.

Segundo item: a solidão que nasceu no dia em que me perdi do olhar azul de meu anjo e que morrerá depois de mim. Não me serve para nada, mas não posso doa-la... Quem quereria cultiva-la, ela, que tem raízes subterrâneas, aquáticas e aéreas para perpetuar sua espécie?

Tenho um vestido de petit pois, um anel de azeviche e o livro das previsões, perdidos no baú de labirintos. Tenho um gato que mente que é de pelúcia para fazer uso da colcha de cetim, um cão que quer ser meu dono, um gato de pelúcia de olhos de falsa ametista que amedrontam o gato e o cão.

Acho que minhas coisas estão cansadas de ser. Encontro-as todas com o ar de enfado de ter a mesma cara desde o momento original. Se estão exaustas de mim, só posso dizer que eu delas. Mas temos, eu e as coisas, o consolo da libertação recíproca iminente. Quando eu estiver de malas prontas, fingirei um sorriso de prévia saudade. Elas haverão de me olhar com o alívio de me ver finalmente devorada pela porta de saída.

Tenho também um pacote completo de ilusões. Se tivesse ouvido o poeta, e jogado fora uma a uma ao longo do caminho, teria entendido como a vida é leve. Não dá mais tempo. Não dá mais tempo para o amor em prosa que tenho guardado na gaveta de uma cama que tem gavetas. Com o tempo que resta vou enumerar no inventário a constelação de néon, todas as palavras que continuam não ditas, o dicionário de Esperanto, o poeminho do contra rabiscado na mesa, a esperança de abril, a desordem do próprio inventário...

domingo, 22 de março de 2009

Contradança


Da série Breves Contos


Tranquei no quarto escuro meu anjo da guarda. Ah, se houvesse uma solitária, uma masmorra... Ficará no quarto por esta noite, suportando meus espelhos esféricos, meu baú de labirintos e o fantasma que na madrugada insiste em libertinagens. É o meu troco por sua negligência, por sua bússola louca que me levou a tantos desertos. Hoje veio me contar que a vida mente, acendeu um cigarro de conteúdo black e disse que também foi ludibriado. Depois se estirou nu no divã e pediu seu bule de vinho das almas. Anjo herege e sem caráter... Ficará aprisionado enquanto pinto as unhas, enquanto enfeito o corpo em transparências e decoro o colo em pedras e metais. Se me perguntar para onde vou, lhe direi a verdade: ao inferno propor uma contradança.

sábado, 14 de março de 2009

Reticências

Deixe-me sozinha... morreu o trema. Sou mais uma entre milhões de órfãos piegas que andam chorando sua morte. Pobrezinho, tão protetor dos us desamparados dentro das toscas palavras sequela e tranquilo. Até linguiça, com a presença do trema, era menos bizarra. Ao deparar com a palavra, era regra que minha atenção se voltasse para os dois pinguinhos parecidos com dois olhinhos meio desconfiados olhando de baixo para cima o altivo pingo do i. Pois o novo acordo da Língua Portuguesa matou o trema, e ele nunca mais deverá ser visto cobrindo a concavidade dos us, que vulneráveis às intempéries, se encherão de poeira e folhas secas e chuva. Estou triste, mas antes o trema que as reticências...

Ai de mim, se o acordo – que não é reforma – matasse as reticências. Nunca mais meu texto seria o mesmo. Tenho um caso de amor com elas que vai durar pelo tempo necessário para exprimir as coisas mais naturais e mais fundas de alguém que adora os dramas e umas tantas sentimentalidades, já que todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo. E no meu caso, além das vírgulas, é claro. Ao iniciar qualquer escrito, tenho sempre à mão um bom saco de vírgulas, usado sem a menor economia. De vez em quando uma delas cai no lugar errado e fica lá agonizando, até que eu a veja e a pendure na palavra certa. Isto quando ela não se eterniza, errante e perdida de tristeza, entre um sujeito e um verbo.

Mas as reticências, estas são parte da minha vida, que por sua vez está no que escrevo. Elas empregam às palavras a doçura que não encontro jamais nos homens e são como janelas que me permitem contemplar o infinito significado de uma frase dita pela metade, de uma verdade que sabe não ser absoluta, de uma anunciação que se quer interminável, ou ainda de uma coisa qualquer que possa ser desdita, porque mudamos de ideia, afinal... só quem está morto não muda.

Preste atenção: hoje é sábado, vá olhar o rio de sua cidade – se aí houver –, contemple a forma de pelo menos um distante cirro, sinta o cheiro da árvore mais próxima... embora, e talvez, você não tenha percebido, a paisagem também tem reticências. Espane a poeira de um livro e o abra numa página aleatória. Se houver ali uma frase reticente, leia a página toda. Se fizer tudo isso, você terá colocado uma reticência em sua vida. E nunca vai se arrepender. Elas têm infinitamente mais poesia que os pontos finais...

sábado, 7 de março de 2009

Por enquanto

Inspirado em Por Enquanto, de Renato Russo.

Pobre Baby Zen, que apanhou na rua. Trouxe para casa um braço puído, uma mochila ferida, as mãos lacrimejantes e nos olhos uma flor. A flor do parque por onde andeja junto aos cachorros que ainda não puderam empreender a fuga no navio. O navio que não quis partir antes de abril, porque só em abril haverá poesia para partir. Baby Zen está triste, as pancadas lhe partiram menos a cara que o coração. Pergunta-me o que mudará ao mudar a estação, porque pensa que de tudo eu sei. Nada vai conseguir mudar o que ficou, Baby Zen, eu lhe digo, na silenciosa intimidade com o infinito e com a ternura resignada de quem diz sim a qualquer sorte. É quando ele vem contar que pensava em mim quando viu chegando a morte. Que pensava em mim quando a morte lhe deu as costas e lhe deixou voltar para casa. E que agora sabia que tudo era pra sempre. Na madrugada acalmo os cabelos em tempestade de Baby Zen, beijo as dores intermitentes dos seus olhos e lhe afago as mágoas nuas no peito. Não posso lhe dizer que não sei o que é para sempre. Talvez seja aquele instante em que ele esquece as feridas e salta sobre minhas costas nuas com suas garras de tigre, com sua sede de náufrago. Fecho os olhos para sentir a dança de Baby Zen, que jamais saberá que o pra sempre sempre acaba.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Perto do fim do mundo

Eu pensei que o mundo iria acabar no dia 21 de dezembro de 2012, e parece que não vai. Já havia começado a viver momentos com gosto de despedida, a olhar para a paisagem com a expressão melancólica de quem tem a certeza da viagem, do nunca mais, com cara de quem pode dizer com firmeza: tô vasando. Mas era potoca! Não pude evitar que duas volumosas lágrimas vertessem de meus olhos desolados quando o Fantástico desmascarou a profecia. Foi uma estrondosa desilusão.
.
Se o mundo acabasse de uma hora para outra, com o choque de um planeta, asteróide, cometa, ou seja lá o que for, com a Terra, seria menos sofrível do que a morte lenta que a gente sofre todos os dias, a morte da esperança numa humanidade mais justa e mais pacífica, já que a paz é produto-consequência-resultado da justiça.
.
Semana passada, por exemplo, eu morri um bocado. Morri quando soube que uma menina de nove anos, abusada sexualmente pelo padrasto desde os seis, está grávida de gêmeos. Morri quando um menino de 16 anos, do Quilombo do Curiaú, morreu eletrocutado quando nadava no lago e se encostou no suporte de um poste de energia elétrica enterrado sob a água por uma empresa contratada pelo governo do Amapá! E morri por uma série de outras coisas não menos terríveis, difíceis de enumerar.
.
Eu sei que vou continuar morrendo assim todos os dias, porque crianças continuarão a ser violentadas, atiradas pela janela, eletrocutadas em gambiarras elétricas de gente sem responsabilidade, e a maior parte da humanidade vai continuar assistindo a tudo isso nos telejornais, com cara de não tenho nada a ver com isso. Inclusive eu, que me permito ser governada por essa gente que está aí preocupada em mostrar na televisão o Governo em Ação inaugurando pracinha, eu, que nunca mais fui para o meio da rua, com minhas bandeiras, gritar que o povo brasileiro precisa de arroz, feijão, farinha, carne seca e trabalho, e que o prefeito, o governador e o presidente da república se virem pra arranjar!, que faz um tempão que não pratico solidariedade.
.
Enfim, o fim seria a grande chance de recomeçar, do nada, da explosão, do verbo, um mundo novinho em folha. Ah, outra profecia diz que o mundo vai acabar numa quinta-feira! Hoje é quarta...

domingo, 1 de março de 2009

Entre cinzas

Foi na quarta-feira de cinzas que reencontrei minha velha caixinha de recordações. Daquelas que a gente constrói em casa, usando papelão de outras caixas, papel de presente e até uns pedaços de renda para compor um certo ar de romantismo, naquele tempo em que se começa a supeitar de que a caixa da memória não será suficientemente boa para guardar tanta lembrança. E então a quarta-feira de cinzas foi tão longa que alcançou o domingo. A caixinha, descorada e torta, incorporou o longo tempo de minha ausência, e o tempo alongou a emoção do reencontro.
.
Pois neste domingo de cinzas eu continuo com a caixa aberta e faço a mim a contundente promessa de nunca mais fechá-la. Nunca mais ficarei longe da fotografia da menina de poncho verde e botinhas de camurça, cujas mãos na cintura dizem tanto quanto o olhar confiante de quem acredita que será capaz de conquistar todos os amores.
.
Quero reler todos os dias as cartas escritas em folhas de caderno, principalmente aquela que no post-scriptum diz Meu bem, tu és todo o mal da minha vida, trazida pelo carteiro ao portão dos 18 anos. Quero falar alto os poemas inacabados, rabiscados nas capas dos livros, e com eles voltar a sonhar, como o poeta que se esquece enfim que vai morrer e se distrai a construir castelos. A cada dia vou rever as pétalas da flor herdada de não sei quem, que secaram para sempre na página 88, entre o final da crônica Sobre o Amor e o início da Sobre o Inferno, de um livro de Rubem Braga.
.
Vou carregar no bolso velhos papéis com a receita para chamar a chuva, com a descrição juvenil de um amanhecer que se perdeu no tempo da maneira mais distraída, e a pequena pedra onde a ferro e fogo meu primeiro amor escreveu meu nome. Para nunca mais esquecer quem fui, quem sou.