Desde o amanhecer que percorro a casa à procura do que tenho. Tenho muito, pareceu-me até aqui. Ninguém no mundo precisaria ter tanto. Não é necessário ter todas as coisas que tenho para compor uma vida. Se não as tivesse, poderia ser até mais feliz... Mas tenho, e preparo o inventário, pois sonhei que logo estarei perdida no silêncio cósmico das noites sem lua.
O primeiro item do inventário: pressentimentos. Tenho-os em abundância, e só me são úteis para pequenas inutilidades como saber que no fim da tarde ouvirei o tilintar antigo do sino do carrinho de picolé. E quando na tarde o carrinho enfim passa, me traz uma profunda saudade de Ezequiel, que amava os picolés de tangerina e que morreu criança, bem no meio de minha primeira infância.
Segundo item: a solidão que nasceu no dia em que me perdi do olhar azul de meu anjo e que morrerá depois de mim. Não me serve para nada, mas não posso doa-la... Quem quereria cultiva-la, ela, que tem raízes subterrâneas, aquáticas e aéreas para perpetuar sua espécie?
Tenho um vestido de petit pois, um anel de azeviche e o livro das previsões, perdidos no baú de labirintos. Tenho um gato que mente que é de pelúcia para fazer uso da colcha de cetim, um cão que quer ser meu dono, um gato de pelúcia de olhos de falsa ametista que amedrontam o gato e o cão.
Acho que minhas coisas estão cansadas de ser. Encontro-as todas com o ar de enfado de ter a mesma cara desde o momento original. Se estão exaustas de mim, só posso dizer que eu delas. Mas temos, eu e as coisas, o consolo da libertação recíproca iminente. Quando eu estiver de malas prontas, fingirei um sorriso de prévia saudade. Elas haverão de me olhar com o alívio de me ver finalmente devorada pela porta de saída.
Tenho também um pacote completo de ilusões. Se tivesse ouvido o poeta, e jogado fora uma a uma ao longo do caminho, teria entendido como a vida é leve. Não dá mais tempo. Não dá mais tempo para o amor em prosa que tenho guardado na gaveta de uma cama que tem gavetas. Com o tempo que resta vou enumerar no inventário a constelação de néon, todas as palavras que continuam não ditas, o dicionário de Esperanto, o poeminho do contra rabiscado na mesa, a esperança de abril, a desordem do próprio inventário...
O primeiro item do inventário: pressentimentos. Tenho-os em abundância, e só me são úteis para pequenas inutilidades como saber que no fim da tarde ouvirei o tilintar antigo do sino do carrinho de picolé. E quando na tarde o carrinho enfim passa, me traz uma profunda saudade de Ezequiel, que amava os picolés de tangerina e que morreu criança, bem no meio de minha primeira infância.
Segundo item: a solidão que nasceu no dia em que me perdi do olhar azul de meu anjo e que morrerá depois de mim. Não me serve para nada, mas não posso doa-la... Quem quereria cultiva-la, ela, que tem raízes subterrâneas, aquáticas e aéreas para perpetuar sua espécie?
Tenho um vestido de petit pois, um anel de azeviche e o livro das previsões, perdidos no baú de labirintos. Tenho um gato que mente que é de pelúcia para fazer uso da colcha de cetim, um cão que quer ser meu dono, um gato de pelúcia de olhos de falsa ametista que amedrontam o gato e o cão.
Acho que minhas coisas estão cansadas de ser. Encontro-as todas com o ar de enfado de ter a mesma cara desde o momento original. Se estão exaustas de mim, só posso dizer que eu delas. Mas temos, eu e as coisas, o consolo da libertação recíproca iminente. Quando eu estiver de malas prontas, fingirei um sorriso de prévia saudade. Elas haverão de me olhar com o alívio de me ver finalmente devorada pela porta de saída.
Tenho também um pacote completo de ilusões. Se tivesse ouvido o poeta, e jogado fora uma a uma ao longo do caminho, teria entendido como a vida é leve. Não dá mais tempo. Não dá mais tempo para o amor em prosa que tenho guardado na gaveta de uma cama que tem gavetas. Com o tempo que resta vou enumerar no inventário a constelação de néon, todas as palavras que continuam não ditas, o dicionário de Esperanto, o poeminho do contra rabiscado na mesa, a esperança de abril, a desordem do próprio inventário...