domingo, 16 de março de 2008

Doçura

Série Ensaios Sobre a Ternura

Ai, que docinho quando ela sambava na frente da pia cantarolando “eu perdi o meu amor para uma novela das oito...” Me dava uma vontade horrível de arrancar aquele aventalzinho respingado de uma semana de sórdidas frituras e esmagá-la contra a parede da cozinha, até ela gozar. No dia em que eu resolvi agir ela trocou de música: “Um homem bonito assim, o que quer de mim, e o que ele fará comigo?”, suspirava a bandida, pensando em outro, e com o mesmo avental. Pra mim ela deixou de ser doce.

Ilustração: obra de Joan Miró

quinta-feira, 13 de março de 2008

Pássaros de papel

Série Ensaios Sobre a Ternura
-Pelo Dia Nacional da Poesia

A lembrança é remota, como das coisas que se vivem em sonho. Mas lembro que atravessava o Largo da Ordem numa tarde de ventos em que os canteiros da Praça do Relógio explodiam em flores de primavera em pleno verão de Curitiba. Foi então que o anjo, que neste dia andava calado ao meu lado, me disse ao ouvido: “olha o poeta...” E olhei, e vi que daquela vez não era mais uma promessa que me fazia o anjo, que costumava caminhar com a mão entrelaçada à minha sob as paineiras. O poeta estava mesmo ali, ao alcance de minha crença pueril de que a poesia podia ser vista com os olhos. A despeito do tempo, continuo acreditando. Estava ali, Leminski, com a elegância de “um homem com uma dor” que ganhava o tempo de toda uma tarde comovendo-se com os pequenos pássaros de papel que os colegiais libertavam sobre os gramados. Estava ali, recolhendo versos do quadro da tarde, e como se nos “olhasse de dentro de um diamante”, sorriu ao nos ver passar como passavam os pássaros de papel no vento, ou porque tivéssemos os olhos de quem testemunhasse uma aparição cósmica. “Leminski...”, sussurramos eu e o anjo, naquele instante cristalizado no tempo, e depois apenas o vimos se ir, telúrico e quase marginal, caminhando “assim de lado”, levado pelo crepúsculo, com um pássaro de papel colhido na concha da mão.

Ilustração: obra de Joan Miró

terça-feira, 11 de março de 2008

Hay que endurecer-se...

Série Ensaios Sobre a Ternura

O problema foi que ele entrou na minha vida com uma camisa do Snoopy e a barba do Che Guevara. Foi golpe baixo, porque o Snoopy era meu ídolo, o Che o meu tesão. Esperei que esgotasse em verbos suas más impressões sobre os meus princípios burgueses e perguntei a ele se me amaria se fosse ao contrário. Disse que não. Que seria muito esquisito se eu tivesse tesão pelo Snoopy. Foi-se, embrulhado em bandeiras, irredutível na camisa. Aí fui eu que endureci. Ternura nunca mais.


Ilustração: obra de Joan Miró

domingo, 9 de março de 2008

Constelação

Série Ensaios Sobre a Ternura

Morava neste endereço um sonhador que todas as noites dormia sob uma constelação. Deixou-me de herança esta casa vazia em cujos quartos os fantasmas me confundem com ele, o desamparo das paredes sem cor, o silêncio dos gatos habituados aos fantasmas. Mas na noite, quando a casa se rende às sombras e só o sono é o trajeto da fuga, acende-se em fosforescências a insólita constelação de néon colada no teto acima da cama, ao alcance da mão. Assim, nas madrugadas, em vez de acalentar solidões, realizo o desejo ancestral de tocar as estrelas.


Ilustrado com a natureza retratada pelo menino, pelo homem primitivo, pelo gênio contemporâneo espanhol Joan Miró, que morreu no natal de 1983 e não tem a menor idéia do que está acontecendo.

quinta-feira, 6 de março de 2008

A canção "la belle du jour", um poema qualquer do Vinicius e este cravinho amarelo para...

Diva Rojanski, Rosa Rente, Rebeca Braga, Heluana Quintas, Ana Martel, Lia Borralho, Maria Rojanski, Deyse França, Juliele, Elíude Viana, Dona Zefa, Cristina Almeida, Janete Capiberibe, Pérola-Pedrosa, Tanha Silva, Dulce Rosa, Ângela Beltrão, Helena Guerra, Olívia Rojanski, Márcia Corrêa, Patrícia Bastos, Oneide Bastos, Rose Oliveira, Marluce Salomão, Araciara Macêdo, Maria Picanço, Sônia Canto, Flora Pacheco, Raimunda Gracideth, Júlia Rojanski, Janeide Pessoa, Marli Mafalda, Girlene Oliveira, Carla Nobre, Ely Almeida, Ode Pessoa, Denyse Quintas, Sândala Barros, Lucidéa Portal, Marcela Leal, Kelly Maia, Adriana Abreu, Luciana Capiberibe, Sueli Pini, Leacide Moura, Iramel Lima, Tia Lucy, Elaine Juarez, Marici Rojanski, Richene Amin, Sol Pelaes, Artionka Capiberibe, Inakê Malheiros, Marina Beckman, Marta Lacerda, Vanea Avlis, Inês do Vale, Bárbara Castro!

terça-feira, 4 de março de 2008

Precisa-se

De Clarice Lispector
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos “precisa-se” e “oferece-se”, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém, homem ou mulher, que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente, pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, tanto que até parece que só as viu depois que tombaram; precisa-se urgente, antes da noite cair, porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível se ficar tarde demais. Essa pessoa, que atenda ao anúncio, só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste, porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar.
P.S: Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Definição de infinito

Poemas de Elíude Viana

O que dois pontos humanos
podem ser no universo dos desejos?
Podem ser estrelas...
Podem ser bichos...
Podem ser areia...
Ou podem ser nada
- o que pode ser tudo.


Duas velas

Levo o infortúnio de não ter
- como os relógios -
horas eternas...
Nem a felicidade
que têm os faróis
de ficar à deriva, indefinidamente...
Sou uma embarcação
- atracada -
querendo voar com as gaivotas.