terça-feira, 26 de maio de 2009

Ágata

Da série Breves Contos

O corpo veludo pérola do oriente se levanta leve, entre a intenção e o bocejo, no dia líquido de céu turquesa. Ela anda em direção à esquina, e os olhos verde jade, lânguidos da tarde entregue à preguiça, lambem o colar de topázio azul da vitrine. Perde-se parada a sustentar o desejo na língua quartzo rosa, envolta na brisa do mar esmeralda, e se volta à melodia do canto que chega do jardim de pássaros safira. É o fim do crepúsculo opala quando atravessa de volta entre os transeuntes que fogem do anoitecer que se prenuncia em granada castanho. Na sala, abandona-se aos dedos decorados em água-marinha que lhe enfeitam o pescoço com o pingente de ametista, e como em passos de petit ballet, salta felina para o telhado a miar para as estrelas diamantes que cintilam no ônix da noite.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Esses dias...

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Faz dias que nada penso, nada escrevo, nada prometo... Culpa de Thiago de Mello, poeta e louco, que me ensinou a brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

I

Escrevi uma pequena série que não pretende se enquadrar em nenhuma forma literária – nem conto, nem crônica. São apenas textos que fluíram do desejo de dizer... Dei à série o nome de Linhas Tortas.


Deus, não espero que a esta carta o senhor responda formalmente, já que não me respondeu a tantas outras. Mas espero por um sinal. Se o senhor se aborrecer, pode responder com um temporal que arranque as telhas da minha casa, por exemplo. Antes assim do que me deixar pensando que para o senhor eu sou apenas uma bolha n´água.
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Estou lhe escrevendo para dizer que acho que o senhor dorme, sim. Ao contrário do que dizem os pára-choques dos caminhões, que Deus não dorme. E acho inclusive que o senhor anda dormindo de touca, perdendo a boca e fugindo da briga, senão como é possível explicar essa vida tão torta?
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Eu sou um cara simples, que até pra escrever precisa da ajuda dos poetas, de quem vive tomando versos por empréstimo. E pra não parecer leviano poderia enumerar razões para a certeza de que o senhor dorme, mas esta é tão grave que deve ser suficiente... olha: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
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Percebe o tamanho do desencontro? É a maior das catástrofes humanas. Se Lúcifer tivesse vencido a revolução contra o senhor, talvez tivesse administrado as coisas de modo mais simples: João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim e Lili se amariam uns aos outros, e viveriam em recíproca e constante entrega de seus corpos e almas, sem que isso representasse uma vergonha. E seriam todos felizes. Não vamos nos enganar.... Lúcifer é um libertário!
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Eu não queria parecer vago nem obtuso, mas o mundo sob o seu comando anda muito paradoxal. Em quem eu devo acreditar enquanto o senhor dorme? No sujeito que disse que existe muito mais inferno entre o céu e a filosofia do que possa supor meu vão mistério? Em que eu devo pensar enquanto espero providências: no poder da olfação dos gnus? Na migração sazonal das borboletas amarelas?
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Lili continua sem amar ninguém, e eu me despeço sem pedir desculpas, porque não sou do tipo que morre de medo quando o pau quebra, embora haja quem diga que eu não sei de nada e que eu não sou de nada. Assino embaixo tudo o que disse. As outras dúvidas que possuo ficam para a próxima carta, que o senhor poderá ler quando acordar. Se...

sábado, 9 de maio de 2009

Presente

Continho para minha mãe

Nas noites mais escuras, sem lampiões nas esquinas castigadas de poeira, extintos já os vaga-lumes na paisagem calcinada pelo sol da eras, sentávamo-nos à beira da rua, nossa mãe apagava a única lamparina da casa e pedia que fechássemos os olhos para ouvir as histórias que ludibriavam nossas dores antigas, nossa fome hereditária e o sono milenar de deus que nos eternizara no esquecimento, até que chegava o momento mágico em que ela nos dava o sinal para abrir os olhos, e então emergíamos da escuridão e dos abismos de toda a vida, para receber, por suas mãos iluminadas, o fabuloso presente do acender da lua.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Divaganças e desesperações

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Tenho um amigo que anda pensativo sobre o destino humano, sobre o que somos e o que estará reservado a quem tem, por uma vida inteira, se dedicado a errâncias. Graças a Deus é só um. Nas ocasiões em que o encontro me sinto tentada a lhe dizer, com toda a crueza que tenho aprendido comigo mesma, o que penso sobre a epígrafe de um livro do Saramago – As Intermitências da Morte – que diz: saberemos cada vez menos o que é um ser humano. Mas tenho medo que lhe soe como uma terrível e invencível verdade. E que isto lhe mate o resto de esperança de descobrir de repente que somos qualquer coisa que o Céu aproveite mais tarde.

Prefiro continuar a vê-lo com o olhar perdido para as lonjuras do rio Amazonas, e ouvi-lo dizer as estranhezas permitidas a quem está chegando aos sessenta. Eu respeito sua cabeça branca. Outro dia me disse, com os olhos rútilos mirando o copo de cerveja: semana que vem vou passar 14 dias sem beber. Aperto-lhe a mão e lhe digo: Claro, eu compreendo como será comprida sua semana. Ele não entende. Está outra vez pensando na singular finalidade de nossa existência e importância no cosmos, se todos os seres vieram dos seres do mar, pra onde irão os bons e os bobos, os maus e os malas, etc. Eu penso no meu último desejo para o dia do juízo: lasanha de espinafre, que isso sim vale a pena.

Eu não mato suas esperanças, mas também não as alimento. Ando impressionada com a constatação de que o ser humano não muda, apesar da determinação científica de que a evolução nunca cessa. No futuro não teremos pelos no corpo... E daí, se estamos cultivando na alma monstros cada vez mais peludos e perversos que se expressam em nossas desumanidades diárias? Não. Não sou dada a obviedades existenciais. Já vou parar.

Depois de sua insólita promessa, meu amigo disse que não está contente consigo, que quer mudar, a burrice e a truculência com que tem se defrontado têm-no levado a repensar suas atitudes. E como tenha captado em meus olhos uma expressão de ceticismo nada sutil, arrematou: Ei, Lulih... eu estou mudando devagar. Reciclagem é fácil numa lata. Eu sou um ser humano. Foi a minha vez de estender os olhos para as lonjuras do rio. E meio envergonhada de minha própria desesperança, me limitei a divagar: por que todos os barcos são brancos?

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Continhos da Chuva

Fechei a porta na cara da chuva.
Ela nem viu que foi distração:
vingou-se no meu jardim,
deixando à mingua minha roseira...


Escondeu-se da chuva sob a árvore e
a árvore lhe choveu mangas sobre a cabeça.
Era um dia feliz:
foi comer manga na chuva.


Espiei a chuva mansa pela janela
enquanto ela espiava minha casa
pela goteira.