terça-feira, 30 de março de 2010

Pássaros de papel

.
A lembrança é remota, como das coisas que se vivem em sonho. Mas lembro que atravessava o Largo da Ordem numa tarde de ventos em que os canteiros da Praça do Relógio explodiam em flores de primavera em pleno verão de Curitiba. Foi então que o anjo, que neste dia andava calado ao meu lado, me disse ao ouvido: “olha o poeta...” E olhei, e vi que daquela vez não era mais uma promessa que me fazia o anjo, que costumava caminhar com a mão entrelaçada à minha sob as paineiras.
.
O poeta estava mesmo ali, ao alcance de minha crença pueril de que a poesia podia ser vista com os olhos. A despeito do tempo, continuo acreditando. Estava ali, Leminski, com a elegância de “um homem com uma dor” que ganhava o tempo de toda uma tarde comovendo-se com os pequenos pássaros de papel que os colegiais libertavam sobre os gramados.
.
Estava ali, recolhendo versos do quadro da tarde, e como se nos “olhasse de dentro de um diamante”, sorriu ao nos ver passar, como passavam os pássaros de papel no vento. Ou porque tivéssemos os olhos de quem testemunhasse uma aparição cósmica. “Leminski...”, sussurramos eu e o anjo, naquele instante cristalizado no tempo, e depois apenas o vimos se ir, telúrico e quase marginal, caminhando “assim de lado”, levado pelo crepúsculo, com um pássaro de papel colhido na concha da mão.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ABILASH

Queridos amigos,

Apresento a vocês meu livro: Abilash – Conto da Amazônia, um pequeno filho, nascido muito tempo depois do nascimento do filho mais velho: Lugar da Chuva. Mas com a literatura é assim... passa-se tempo precioso escrevendo e tempo amargurado tentando publicar. E este momento, o de ter a nova criação nas mãos, o livro prontinho saído das máquinas que concretizam o sonho da palavra no papel, é ímpar, é singular. Pois Abilash está aí... foi publicado pela Editora Escrituras, tem 64 páginas e conta a história de um menino que renasce na Amazônia para plantar a semente da preservação e do amor à vida no coração do homem. Espero, com Abilash, reavivar a esperança no coração de todos os leitores. Um abraço.

Início do conto:


Inspirado no renascimento de Abilash.


Um menino de três meses foi resgatado dos tsunamis que flagelaram o Sri Lanka, na Ásia, no final do ano 2004. Nove casais que haviam perdido seus filhos disputaram sua paternidade. Depois do cataclismo, com o filho renascido nos braços, os pais verdadeiros o chamaram Abilash. Para os nove casais, ele foi o filho desejado.

Somente as águas do rio Amazonas assistiram naquela noite à chegada do menino. E estavam mansas como quem dorme, guardadas pelo clarão vigilante da lua sobre o rio. O menino estava nu, de olhos abertos, e do fundo de uma canoa embalada pela calmaria, fitava no céu as constelações cintilantes de dezembro.

Queridos amigos, comprem! Na Banca do Dorimar e na Livraria Transa Amazônica.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Ausência

Desculpe. É que deixei algo primordial perdido no destempo. Talvez o fio de minha meada. Talvez a voz, no ruído branco da multidão. O segredo de desvirtuar o tempo, no tempo que anda a minha espera. Venho inventando contradanças, estudando a origem incestuosa de Tutankamon, lendo poemas de Maiakovski que Maiakovski não escreveu. Não tenho visto mais que a dança dos cristais à flor da água, num horizonte rasgado em tiras, os rodeios da noite, borboletas noturnas que se escondem do dia. Não tenho ouvido mais que o sussurro de meu próprio cabelo em oscilações mínimas na pressão do ar, a medida da razão entre duas quantidades do caminho que traçam minhas unhas sobre a minha pele. Mas vejo a primavera chegando antes de seu tempo, a primavera parindo Zaratustra, ouço o riso de Zaratustra à margem do ventre... Trago nas mãos meu próprio coração. Ele ainda pulsa.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Origami

Da série Breves Contos
.
Eu já havia composto cem origamis de guarda-chuvas quando ele percebeu que chovia. Disse então que eu compusesse mil origamis da garça de papel japonesa*, se desejasse ser dona do seu coração. Compus um dragão. Um dragão celestial que devorou o sol. E realizei o desejo ancestral de ser dona da chuva.
.
*Segundo a cultura japonesa, aquele que fizer mil origamis da garça de papel japonesa terá um pedido realizado.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Dois Ponto Três Lisboa

tô sem ideia. sem vontade descrever. de nada. não tenho a mínima ideia do que virá a seguir. inércia é meu sobrenome. ando tão feio. tão sem assunto. me assusto. ninguém mais há em minha volta. tô cansado da minha companhia. só falo besteira. não digo nada com nada. preciso exercitar a pena. se ela se move que seja na minha mão. trêmula e bolorenta. mesmo que seja para ser mais um papel sujo. se isso fosse uma folha em branco, você podia desenhar, descansar a vista. ou escrever um bilhete suicida. mas eu passei primeiro e ... se você não se importar, rabisque por cima. por mim tanto faz. acho até que vou tomar um bagaço e ver no que dá. vou à torre de belém olhar o tejo. matar o tempo pra não me matar, esse é o meu nome. fiquei nos quartos dessa casa em benfica o dia todo, ouvindo rock, lendo história em quadrinho. boa noite. talvez alguém leia e curta isso aqui. tanto faz. embora tudo que mais quero nessa porca vida é te botar feliz. bagaço basta o meu e o da uva.

Chacal
Lisboa (1973)