sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

De Andréa Del Fuego

Não troco os lençóis há dois meses, e acho pouco. Dispensei todo pano entre mim e o colchão, a não ser que você traga uma toalha de mesa bem chacoalhada na varanda, sem migalha de vagabundo.
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O cabelo da mulher é a raíz da árvore. O caule é pensamento, as flores o desentendimento entre o fruto e a atrofia. O homem passa a vida querendo desenterrar a cabeça da mulher. Por nascer de uma, sua cruzada é perigosa e superior. Por isso me protejo.
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Cuidaremos nós dois de sua vida. Eu entro com a vontade, você com a preguiça. Assim tenho tempo de fazer minhas coisas enquanto intuo as suas. Vejo lucro, abarcar dois raciocínios sai caro, mas você não está aqui de graça.
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Selton Mello me ignora, e daí? Homens mais magros já me cortejaram, nem por isso correspondi. Seleciono quem me escolherá, só não decoro a idade dos janotas. Não desisto por menos de dois foras, rejeição se configura na quinta ou sexta negativa.
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A pressão sanguínea é baixa, onze por sete, de modo que suporto emoções a ponto de mantê-las latentes. Cubro qualquer oferta pela tua explosão, o borrifo de saliva no papel de parede. A roupa de baixo é solúvel, uso tatuagem de chiclete.
Ilustração do cabeçalho: Ray Caesar

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Branquinha

Texto de Maria Rojanski
Vê só, marinheiro, os olhos ternos da moleca. Distantes. Longe, longe. Olha só. Ela se agacha à beira-mar, agarra na coxa a barra do seu vestido cravejado de flores, e o vestido a ilumina de flores. Sabes, marinheiro, aquela flor? A que só desabrocha inteira quando a lua clama, como que pra se deleitar à luz de prata? E a moleca se espreguiça, toda prosa. O remanso traz a água pra lamber com ternura seu pé descalço e casto, seu corpo é casto, na areia túmida. A moleca já põe a canoa no mar, está agora molhada de mar até os joelhos, segura, tira a água suja do fundo do barco com a cuia. Esse barquinho é à vela. Balança, treme. É quase noite no cais, marinheiro. Daqui pra mais tarde a moleca vai tirar o chapéu de palha, vai derramar o cabelo castanho nos ombros, vai vestir o vestido de brim e seus traços vão se insinuar no mexido da saia, na nuança do tecido. Ela estará fresca e serena na noite, ela terá sereno e cheiro de mar, sentimento de mar, ela virá dançante como a maresia, ela chegará como a brisa. Mas agora, que é quase noite, que ainda é dia, ela já se sentou na proa, ela pegou o remo e está remando, e remando... Marinheiro, meu amigo marinheiro, homem de bem, o que vai havendo? Ela está branca e iluminada, e vai sumindo no horizonte. Distante. Longe, longe. Não diga que é verdade que ela parte, marinheiro! A noite enfim desmaia, tem uma lua grande e pálida. Um homem entoa uma canção de lamento num cais distante, e tu entendes o homem, marinheiro.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Um beijo longo

De hoje até o dia 08 de março, Ave, Palavra! estará publicando textos de mulheres ou sobre mulheres. Para os homens provarem do biscoito fino que a gente fabrica. Esperamos que eles gostem, já que no final das contas é quase sempre pra eles o biscoito... A cada postagem trocaremos a foto do cabeçalho, de acordo com o que o texto nos inspirar. Este primeiro, Um Beijo Longo, é da Carla Nobre, um poema do livro Sobre o Adeus e o Encelado de Saturno, que nos emociona a cada releitura.

Eu tenho de ir
Moro no vento
No arco
Íris do teu olhar

Te deixo
Esse gosto do Atlântico
Que é conquista e travessia
E vai te fazer pulsar sem mim

Te deixo a minha boca
Ardida, desvairada e perdida
Que paira no teu peito, ar e mar...

Eu tenho de ir
A maré baixou
O encanto do gandavo
Tem hora certa para a dor
Para o "para sempre"
Perdido no fim de nós dois...

Me deixa ir
Que eu levo os sapatos e a escada
E deixo todas as estrelas de princesa coroada
Neste teu cetro incerto e desejado
Dentro de mim

Te deixo as melhores cartas do baralho
E você joga seu destino
Sem mim

Um dia a gente ainda se olha
E é tempestade por aí
Na nossa quentura
Do que não acaba jamais...

Me deixa ir
Que sou meio sereia
Vou ficando pelo mar
Você é meio capitão
Sempre dá para reencontrar
Antes de naufragar

Toma tudo de mim
O que me contém
Minha geografia em tuas mãos
Meu além

E eu vou indo nesse relâmpago de solidão, meu bem...

Foi tudo rápido cometa
Entre nós dois
Mas deu tempo de te fazer um relicário
Guardando o beijo longo do adeus...

E eu vou indo...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Desculpe, foi engano...

Engano meu, querido leitor, o crédito do texto "Eu sei, mas não devia". Minha Maria leu e veio correndo como uma criança de cachinhos ao vento me dizer "mãe, o texto não é da Clarice, é da Marina Colasanti". Talvez não seja tarde, embora seja confuso dizer: eu bem que desconfiava. É um texto parecido com Clarice, todavia diferente de Clarice...
Semana que vem trago nova postagem, não sei se novo texto, e nem sei se meu, que ando escrevendo pouco - pra não dizer escrevendo nada... Talvez um do Padre Antônio Vieira - encontrado junto ao da Marina Colasanti, no mesmo arquivo morto das cinzas do carnaval e durante uma mudança de endereço - que fala sobre o poder do tempo. Que sorte encontrar coisas assim para nos consolar quando se tem que deixar uma casa que a gente ama ainda que não seja nossa. Pelo menos o novo endereço tem mangueiras e vento do rio, que eu não sei o que seria de minha literatura se eu não tivesse uma grande janela para contemplar todo dia o infinito.
Sei que as postagens têm envelhecido por aqui. Mas as novas palavras hão de brotar, é uma questão de tempo. Assim me promete o Padre Antônio Vieira.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Eu sei, mas não devia

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias de água potável. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma."
Texto vivíssimo de Marina Colasanti, encontrado em um arquivo morto, nas cinzas do carnaval...