quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Marie

Série: PANDORA

Ilustrações: telas de Modigliani

Marie colheu a doença da caixa de Pandora...



Ferdinand voltou a freqüentar minha casa, como nos velhos tempos, seu espectro solitário no quarto dos livros, o lugar escolhido, antes e depois da morte. Na primeira vez em que o vi, muito depois de sua partida, espantou-se de que o tratasse como se o tivesse visto há pouco. “E os fantasmas contam o tempo?”, perguntei-lhe, e ele me respondeu que sim, que o tempo é muitas vezes mais longo se a morte é triste. “Escolhesse uma morte melhor”, desafiei-o, e ele sussurrou que sua morte era triste porque havia escolhido morrer. Sempre que chego, encontro-o no quarto dos livros e conversamos sobre as coisas que temos visto. Eu lhe conto dos poemas de amor que escrevo, como um grito de rebelião contra o nada, dos sonhos em que os ocasos se fazem a qualquer momento, com a mágica simples do sopro de uma palavra doce. Ele me conta de quantos têm chegado por lá por vontade própria, tangendo esses mesmos sonhos. “Ferdinand, você está muito mais velho do que quando se foi”, disse-lhe um dia. “Na morte também se envelhece, Marie, e depois vem outra morte”. Eu acho graça de seu apego. Matou-se porque quis. Embaraçou-me em solidão e também ficou sozinho. Ferdinand diz que logo vou morrer também, do mesmo mal: a crença demasiada na vida. Eu não sabia, mas acredito no que ele diz.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Luna

Série: PANDORA
Ilustrações: telas de Modigliani
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Luna colheu a mentira da caixa de Pandora...

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Passei três anos perdendo tempo na faculdade de Ciências Sociais. A única utilidade foi descobrir que Deus não existe e que a humanidade emburrece mais a cada solstício. Joguei uma mochila nas costas e andei pelo México e pela Inglaterra, procurando o sentido da existência. Los chicos me ensinaram um pouco. Dos ingleses não saiu nem um sorriso. Por aí disseram que eu estava passando uma temporada no Daime e que voltei inventando voltas pelo mundo. Então... voltei sem dinheiro, sem homem e sem ideologia, decidida a morar na rua, doesse o quanto doesse. Em algum lugar o sentido tinha que estar. Passei oito meses dormindo no papelão, comendo o pão sovado pelo diabo, sem lugar nem na mesa do inferno. Nos primeiros dois meses perdi seis quilos, dois dentes e o livro de poemas do Baudelaire que ganhei de um mexicano pra quem dei uma coisa. Os do contra dizem que deixei o livro, o peso e os dentes na cama de um figurão que tem fama de violento. Depois me acostumei a passar fome, a ficar dias sem tomar banho, desenvolvi até um pouco de afeto pelo beco onde esticava o papelão. Ou decifrava as ruas, ou me suicidava. Foi quando encontrei essa galera punk, me encontrei comigo mesma, punk na minha origem, o punk niilista, um pouco encardido, mas criativo, dissidente de todas as influências perversas. Não precisei mais procurar o sentido. Ele não existe. Dá uma olhada aí no meu zine e diz o que tu achas da minha filosofia. Mas me paga outra caipirinha que eu te conto mais uma história.

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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Olga

Série: PANDORA Ilustrações: telas de Modigliani

Pandora é a mulher mitológica criada por Zeus para castigar os homens pela ousadia de Prometeu em roubar dos céus o segredo do fogo. Zeus deu a Pandora uma caixa, cujo conteúdo eram os males que passariam a atingir a humanidade: a velhice, o trabalho, a doença, a loucura, a mentira e a paixão. Depois de aberta, somente a esperança ficou no fundo da caixa.
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Olga colheu a velhice da caixa de Pandora...
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Fui muda até os sete anos, porque a única pessoa com quem podia falar, num rincão dos pampas gaúchos, era minha mãe, que me trazia no ventre e que ficou muda quando recebeu a notícia de que meu pai tinha morrido num confronto da Coluna Prestes com a ditadura do Getúlio. Faz tempo. E era bem mentira. Meu pai estava vivo e feliz em Porto Alegre, vivendo com uma china que conheceu durante o recrutamento dos homens que iam subir o Brasil com o Prestes. Quando soube, anos depois, minha mãe, que estava muda da boca, ficou muda também dos braços e das pernas e logo morreu. Mas era tarde pra mudar meu nome. Apesar da mágoa de minha mãe pela revolução, fiquei Olga. Fui morar então com uma tia que vivia num pinhal do Paraná, e que também era quieta como um pinheiro. O que eu sabia bem quando cheguei ao pinhal era imitar os bichos: porco, galinha, cabra. Imito até hoje. Estou pertinho dos oitenta, mas o maior medo da minha vida não é o de morrer daqui a pouco, é o de ficar muda de verdade.
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domingo, 19 de outubro de 2008

Depois do Enfim

Pepê Mattos é um poeta que sempre passa pela ruazinha incerta deste blog, observa aqui o tempo, desvenda circunstâncias, divisa sonhos e colhe em minha prosa um pouco do que sou. Em uma de suas vindas, deixou este breve conto, escrito no tronco de uma das árvores da ruazinha banhada de sol.


"Enfim, assim, estampado na camiseta, ela saiu pelas ruas. Seu estado de espírito resvalava ali pelo completo desapego a tudo que a circundava. Nem se importara com a imagem do espelho mostrando uma mulher que conhecia desde o momento em que levantava da cama até quando o sono (ou uma frustração qualquer) a jogava lá de volta. Conhecidos lhe paravam nas ruas querendo respostas que os convencessem de que tudo ia bem com ela. Ignoravam que resposta nenhuma ela tinha e o máximo que saía eram umas frases atropeladas que eram decodificadas como um "tudo bem", mas que ela mesma admitia que fosse "e daí?". Ensimesmada com tamanho infortúnio resolveu entrar na primeira sala de cinema que encontrasse pela frente, na ânsia de vislumbrar no infortúnio dos outros conforto para sua inquietude. A película lhe desdizia mais coisas que todos os desmandos ouvidos até então. Insatisfeita com sua decisão, resolveu atentar para a atuação dos atores. Isso não lhe tomou mais que duas horas de seu precioso tempo. Algumas lágrimas rolaram pela sua face límpida, perfazendo um percurso que terminara ali no canto dos lábios. Não soube dizer se eram pela história que assistia na tela ou pelo que vivenciara desde que saíra de casa..."

domingo, 12 de outubro de 2008

O marinheiro perdido

Hoje é também dia do mar. Um bom momento para publicar este conto tirado de um antigo blog que foi para sempre para o arquivo morto.

Fazia cem dias que o marinheiro extraviado vagava pela praia, fazendo nas tardes o mesmo percurso das manhãs e falando sempre com as mesmas pessoas que jamais entendiam sua língua. Perdera a partida do cargueiro de uma pátria que não era a sua, que de retorno aos seus portos o deixara para trás, perdido entre garrafas, entre companhias ignóbeis e as lembranças da mulher amada. Em troca do trabalho nos guindastes, davam-lhe pão e cachaça. Dos bêbados tornou-se amigo leal e era visto nas madrugadas chorando abraçado às putas que se trocavam pelas mais vulgares ervas. Eram dele os gritos que se ouviam na quase manhã, quando antes que o sol surgisse ele clamava que o dia lhe trouxesse de volta o navio que na verdade só viria no ano seguinte. Fazia cem dias que o marinheiro extraviado vagava inútil entre as carcaças dos navios quando se ouviu seu grito pela última vez, no instante em que se jogou ao mar do alto da mais alta rocha, com a fotografia de uma mulher russa tão linda quanto o sol da meia-noite. Quem ouviu o grito pensou que ele se revoltava ainda uma vez contra a própria sorte, e nunca soube que ele dizia eu te amo na língua de sua Narkissa.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Um conto sem título, um pouco Breve.
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Ele não tinha medo de nada. Das noites de janela aberta, da escuridão, dos tropeços nas pedras disfarçadas de sombra. Não importava a travessia, o cansaço, o açoite da chuva, a madrugada. Tinha no peito a garra de um Ícaro, podia viver nas regiões rebeldes, enfrentar o santo guerreiro e o dragão da maldade. Era sozinho e combatia com febre as machadadas de Brucutu. Multiplicava-se por si mesmo, podia descer às profundezas abissais do inferno, percorrer a extensão da muralha da China, derrubar maremotos, samurais, o dragão celestial que devora o sol. E se encontrasse a morte no caos ou no silêncio do Cosmos... encontraria. Mas nada podia contra Eles, que possuíam a arma para abater sorrisos. Para que Eles soubessem disso levou apenas o tempo de seu puro olhar ultrajando a covardia. A primeira coisa que Eles mataram então foi o outono, para que não mais sorrissem seus pés sobre as folhas envolvidas em húmus e povoadas de formigas. Mataram os crepúsculos, de modo que o sol, paralisado no céu, impediu a chegada da noite, e das constelações, e do sorriso inebriado de estrelas. Tomaram para si as suas melhores lembranças, para que nunca mais Ele adormecesse sorrindo pelo que passou. Mataram tudo para o que fosse possível sorrir e mataram um pouco mais. E como ainda assim Ele os olhasse nos olhos e sorrisse a esperança de que um dia compreendessem, Eles mataram a si mesmos.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Enfim!

Como neste domingo eu vestisse uma blusa cuja estampa dizia Enfim, várias pessoas me perguntaram: Enfim o que? Sei lá, não pensei nisso ao comprar a blusa. Mas foi interessante o número de possibilidades que surgiram a partir da palavra. Enfins existenciais, políticos, sexuais, todo mundo queria fazer piada. Mas desde sábado os meus enfins são os seguintes:
1. Enfim assisti ao filme O Amor nos Tempos do Cólera. Puxa, que coisa, nem sei direito o que dizer... Acho que o G. G. Márquez não gostou. Ele nunca gosta, por isso sempre resiste a permitir que filmem seus livros. A atriz Giovanna Mezzogiorno, que interpretou Fermina Daza, ficou com a mesma expressão pregada na face durante as duas horas de filme. E mesmo aos 72 anos tinha a boca dos seus 18.
2. Enfim está provado que Javier Barden (Florentino Ariza) é um ator formidável, que Fernanda Montenegro (Transito Ariza) é uma deusa e que Benjamin Bratt (Juvenal Urbino) é a coisa mais sedutora do cinema universal atual.
3. Enfim um filme em que o diretor (o britânico Michael Newell) conserva falas originais das personagens do livro, embora nem assim consiga passar perto da emoção que a literatura provoca.
4. Enfim... derramei copiosas lágrimas na frente do vídeo, porque a história foi bem contada e emociona, ainda que de maneira óbvia. A fotografia é belíssima, a Shakira cantando toca fundo...
5. E enfim, não sou crítica nem comentarista de cinema pra dizer mais que isso. No geral, gostei do filme.