domingo, 21 de dezembro de 2008

Au revoir!

Sem pressa de voltar, vou indo a um lugar onde não há um só tempo. Onde o tempo é simplesmente o tempo que você quiser que seja. Eu vou indo e quero que ele seja infância. Minha infância tem chuva nas cercas de tábuas, nas ruas de terra vermelha que entram pela floresta cujas árvores tocam nuvens, tem chá de ervas na tarde da varanda de papoulas e colibris, cheiro de maracujá, pitanga, araçá e grama molhada. Tem estrelas em noites inumeráveis, janelas abertas por onde entram a saudade e a lua. Esse tempo é o meu presente. A vocês, como presente, eu deixo O Amor:
.
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas
que dilaceravam o coração.
Então, de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
- Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo;
a mãe,
pelo menos a Terra.
.
Maiacóvski

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Sofia


Último da série PANDORA
Ilustrado com tela de Modigliani


Sofia colheu a paixão na caixa de Pandora...


Na meia-noite eu penso em Baby Zen, eu olho as estrelas da constelação colada no escuro do quarto e elas se parecem com os seus dentes branquinhos que cintilam quando ele pergunta pela milésima vez se eu sei que ele leu Quando Nietzsche Chorou. Sim, Baby Zen, eu sei, eu sei também da encarnação em que você foi rei, digo a ele. Ele fingindo tristeza de menino diz que não pode mais comigo porque de tudo eu sei. Na meia-noite eu fecho os olhos cegos de ver a dança de Baby Zen, e na escuridão ele está rodopiando na madrugada sem grilos do gramado do parque, junto aos cachorros que confabulam a fuga no próximo navio. Baby Zen pede aos bichos que olhem pra mim, e que cantem com ele Sunshine Girl, sua invenção no violão imaginário que arrasta pela madrugada povoada de lua. Toda minha alma está no parque, dançando com Baby Zen a canção que diz que Sunshine nunca ficará só. Mas ele tão pouco sabe de solidão, do medo que tenho de um dia demorar em seu esquecimento, e perde a conta dos dias que some por outras constelações. Quer ser meu Miguel Littín, clandestino em meu corpo, o louco de minha primavera, meu Karenin... perdeu também a conta de quantas almas quer ter e mal compreende que eu quero apenas que seja meu homem. Por isso não posso ignorar Baby Zen na meia-noite em que ele volta chamando em minha janela com apelo de abandonado, quando salta para dentro com garras de tigre, e me sufoca a boca com sede de náufrago. Traz uma flor na mão aberta, a alquimia e o entrepossível. Se Nietzsche teve razões pra chorar, o que será de Sunshine Girl?