quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Meninas ao sol

Para Joana D' arc Gabriel

O sol tem nos esperado paciente naquele lugar onde mora a memória de nossos melhores dias. Se tu lá fores, vai como quem foge dos dias cinzentos de tua cidade de ipês amarelos, que eu deixarei aqui meu rio, meu barco de papel, minha garrafa de náufrago que guarda uma folha em branco, e passearei de mãos dadas contigo entre os gramados às vezes castigados pelo inverno, entre as papoulas agitadas pelos ventos constantes de nossa cidade tão alta. Desceremos as escadas que levam ao meio da praça e escolheremos o melhor canto para abrigar nossa saudade. Então rabiscaremos cadernos, faremos jogos infantis para descobrir o futuro, inventaremos poemas de sangue para quatro ou cinco daqueles nossos amores extraviados... Se quiseres, irei contigo visitar a casa da rua Tókio, quase oculta entre as samambaias, mas que deverá ainda guardar um pouco da doçura das meninas que debruçadas na janela do quarto espiavam a felicidade desenhada nas nuvens que pareciam encostar-se nos montes salpicados do gado branquinho. E tu irás comigo ao pequeno morro de onde veremos que o sol ainda é o mesmo, ainda que tantas sombras tenham vindo empalidecer por vezes as nossas tardes, ao passo desse tempo tão longo de nosso desencontro. Ou então, se for sábado, podemos outra vez pegar a estrada até Santa Isabel do Ivaí ou Santa Cruz do Monte Castelo, de onde voltaremos rindo depois, em qualquer boléia. Que só nos importe que seja sob o sol que está à nossa espera. E que ele seja generoso ao iluminar a lembrança daqueles teus cabelos que se derramavam em anéis dourados pelos teus ombros, na manhã em que fugimos da escola somente para assistir à passagem da própria manhã. De ti não possuo retratos, mas te vejo tão clara e tão bela sentada na calçada sob uma paineira, um pulôver vermelho, um livro gasto sob o braço, uns tênis muito brancos e um olhar de anjo livre sob os óculos. Com tua palavra simples poderás me ajudar a compreender as razões dos desencantos de agora, e para ti eu cantarei uma canção que devolva a ternura aos nossos olhares porventura endurecidos. Levarei aquele livrinho amarelo em que me escreveste em letrinhas reviradas que eu nunca esquecesse de nós duas. Guardo-o em minha gaveta há 25 anos. Deixa aí os ipês, que florescerão de novo na próxima primavera, que eu deixarei aqui as árvores que sob a chuva gotejam mangas. Vai, antes que o tempo. Antes que a vida. Que a lembrança. Vamos andar sob o sol de Loanda...

2 comentários:

Anônimo disse...

Seu texto dá na gente uma saudade... uma saudade que a gente nem sabe de que. Se a gente soubesse, talvez fosse em busca de. Um beijão.

Maria disse...

"Se quiseres, irei contigo visitar a casa da rua Tókio, quase oculta entre as samambaias, mas que deverá ainda guardar um pouco da doçura das meninas que debruçadas na janela do quarto espiavam a felicidade desenhada nas nuvens que pareciam encostar-se nos montes salpicados do gado branquinho"

Ah, mas que coisa mais doce, mãezinha... O teu texto anuncia a primavera! Límpido, com uma luz alegre e suave, tem o aroma e as cores das flores. Adorei. Também fiquei cheia de saudade, essa saudade estranha que o amigo aí em cima citou...