sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Impressão anunciada


Nenhuma morte em toda a literatura que conheço me impressiona mais que a de Santiago Nasar. E digo isto com o verbo no presente porque acabo de reler “Crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Márquez, e até o momento me encontro com o fôlego em suspenso com a morte do personagem. Eu não estou revelando aqui nenhuma surpresa do livro – sossegue, se ainda não o leu – pois a morte de Santiago Nasar tanto é anunciada no próprio título quanto na primeira linha do romance: “No dia em que o iam matar, Santiago Nasar levantou-se às 05:30 da manhã...”. Mas o que me é impressionante não é a brutalidade de sua morte, embora se possa ter uma vertigem à leitura de tanto sangue, nem as razões que levaram os assassinos a cometer tão primitivo e literário crime, mas o encadeamento de pormenores que tornaram uma cidade inteira sabedora do assassínio antes que ele acontecesse, sem que ninguém pudesse fazer algo para impedir. Os próprios assassinos, irmãos de uma mulher devolvida pelo marido na noite de núpcias, encarregaram-se de anunciar a quem passasse que estavam esperando Santiago Nasar para matá-lo, como se de algum modo desejassem que alguém pelo amor de Deus os impedisse. Por ceticismo, por indiferença, porque não houve tempo, e até em alguns casos por consentimento, a cidade inteira foi cúmplice de uma morte praticada a golpes de facas de estripar porcos, que por sua vez puseram pra fora, diante de centenas de olhos petrificados, todas as vísceras de Santiago Nasar. Contudo, Santiago Nasar morreu sereno, às sete horas da manhã, vestido de linho branco e sem saber porque morria, sob o sol radiante do Caribe, depois de ter visto passar o bispo dentro de um navio que nunca se detinha em seu povoado esquecido. A moça desonrada, sem nenhuma convicção do que dizia, o acusara de ter sido o seu “autor”.
Talvez esta minha dramática – mas sincera – impressão esteja ligada ao fato de García Márquez ter se baseado na morte real de seu amigo de infância Cayetano Gentile para escrever a história, reconstituída através de depoimentos, e só depois da morte da mãe do morto, Julieta Chimento, 30 anos depois, em respeito à sua dor. Impedido também por sua mãe, que tinha Cayetano como um filho, García Márquez não se sentiu “com ânimo para continuar vivendo em paz enquanto não escrevesse a história da morte de Cayetano”, conforme conta no livro autobiográfico “Viver para contar”.

Quando finalmente escreveu “Crônica de uma morte anunciada”, cujo tema literário definitivo é o da responsabilidade coletiva, a mãe disse que jamais o leria, pois “uma coisa que foi tão ruim na vida não pode ter ficado boa num livro”. Enganou-se. A força do realismo mágico de García Márquez neste livro nos faz esquecer sem culpa que Santiago Nasar é Cayetano Gentile, assassinado na porta da frente de sua casa, onde a mãe acabara de passar a tranca, acreditando que ele já houvesse se refugiado dentro.

3 comentários:

Anônimo disse...

Já foi dito várias vezes que o mundo possui quatro estações. Primavera, Verão, Outono, Inverno. Aqui em São Paulo, temos umas 18, só as que consegui contar... de qualquer forma, achei que esse blog fez a morte anunciada de uma estação - e o nascimento de uma nova, que trouxe a ele - e a nós, seus leitores - cores mais vibrantes, mais leves, que tornam as palavras lindas mais estimulantes para ler. Adorei o texto e a mudança. Abraço, Caio

Fábio Luis Neves disse...

É esse livro realmente é muito bom. E essa morte é realmente inesquecível. Concordo com suas colocações, são de uma notoriedade e tanto! Mas acho que o texto revela coisas importantes pra quem não o leu ainda, tais como: o uso da faca como se matasse um porco, a visão do bispo, a cidade toda como testemunha, etc... Porém, acredito que isso não faça diferença pra ler, o texto literário é sempre único e diz por si só. Bom, ele revela, mas não afeta em nada em sua leitura. Agora quem não gosta de saber alguns detalhes não deve ler e logo não poderá ler nunca uma resenha ou artigo de um livro que não leu, por que é impossível escrever sobre um romance sem usar algumas passagens do mesmo.
Gostei do novo estilo!

Maria disse...

Também não sabia dessa relação da história do livro com a morte do amigo de Gabriel García Márquez... Esses descobrimentos, na literatura, são mesmo muito curiosos: eles ajudam de um certo modo a compreender melhor a obra, sem tirar a fantasias das coisas. Compreende? Será que me expressei bem?

O blog ficou muito bonito nestas novas cores; ficou muito mais alegre. Eu gostei muito... Beijos!