quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Marie

Série: PANDORA

Ilustrações: telas de Modigliani

Marie colheu a doença da caixa de Pandora...



Ferdinand voltou a freqüentar minha casa, como nos velhos tempos, seu espectro solitário no quarto dos livros, o lugar escolhido, antes e depois da morte. Na primeira vez em que o vi, muito depois de sua partida, espantou-se de que o tratasse como se o tivesse visto há pouco. “E os fantasmas contam o tempo?”, perguntei-lhe, e ele me respondeu que sim, que o tempo é muitas vezes mais longo se a morte é triste. “Escolhesse uma morte melhor”, desafiei-o, e ele sussurrou que sua morte era triste porque havia escolhido morrer. Sempre que chego, encontro-o no quarto dos livros e conversamos sobre as coisas que temos visto. Eu lhe conto dos poemas de amor que escrevo, como um grito de rebelião contra o nada, dos sonhos em que os ocasos se fazem a qualquer momento, com a mágica simples do sopro de uma palavra doce. Ele me conta de quantos têm chegado por lá por vontade própria, tangendo esses mesmos sonhos. “Ferdinand, você está muito mais velho do que quando se foi”, disse-lhe um dia. “Na morte também se envelhece, Marie, e depois vem outra morte”. Eu acho graça de seu apego. Matou-se porque quis. Embaraçou-me em solidão e também ficou sozinho. Ferdinand diz que logo vou morrer também, do mesmo mal: a crença demasiada na vida. Eu não sabia, mas acredito no que ele diz.

7 comentários:

Anônimo disse...

acho sensacional essa série... é surreal perceber (generalizando, pois é assim que a banda toca comigo ;) de que quem acredita na vida acaba por morrer inconformado por não ter vivido o suficiente e quem não acredita padece esperando a morte... que coisa, não?

Anônimo disse...

Olá Luli, se me permite a indimidade, me chamo Brenda Aguiar, sou acadêmica do curso de Letras da UVA. Estou, junto com mais cinco colegas, produzindo um projeto sobre literatura amapaense, iremos trabalhar mais especificamente com o seu livro, Lugar da Chuva, e gostaria de saber qual a possibilidade de termos um contato mais direto com você para conversarmos sobre o assunto, tirarmos algumas dúvidas, e quem sabe até receber algumas dicas suas.
Ficaremos muito gratos ao receber um pouco de sua atenção e, se possível, entre em contato conosco.(brendaguiar@hotmail.com)
Muito obrigada.

Anônimo disse...

Me desculpe, meus dedos me trairam... eu quis dizer "intimidade".
Boa noite.

Ori Fonseca disse...

Desculpe-me também. Acabei por trair meus dedos. Jurei nunca mais escrever escrever nada pra ti. Apenas te ler, ler, ler.
Mas são juras de um ateu. Eu nunca cri nisso.

julio miragaia disse...

nossa. achei meio macabro, ou não sei se entendi. bem, essas coisas garciamarquezianas me encantam. um beijo querida luli. muito boa a série.

Unknown disse...

Muito bem,que blog inteligente sinhorita!Adoro ver as obras de modigliani espostas e na acompanhia de palavras suas...é mais que simples contos,sei lá!Parabens!!!

Anônimo disse...

Que engraçado, acabei de ler, hoje, A Metamorfose, do Kafka. No posfácio do livro, do Modesto Carone, se fala sobre o estilo "fantasmagórico" do escritor. É um estranhamento, o que a gente sente, ao ler, mas um estranhamento muito positivo. E que coincidência chegar aqui e encontrar um texto de temática fantasmagórica, mas ao mesmo tempo tão real - engraçado, mais ainda, se me lembro bem, o Modesto Carone fala alguma coisa, também, sobre essa coisa do real na obra do Kafka.
Enfim, harmonias. Gostei muito do texto. É lúcido (que coisa).
Um beijo