quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Autobiografia

ou Minha vida dá uma crônica!
Nasci no ano de 1415 do calendário Armênio, e o que me consola é que no Rúnico já era 2216. Só agora compreendo que o Gregoriano é o pacificador dos calendários. Era o ano do cavalo no horóscopo chinês e o ano internacional do arroz. Mas isto não influenciou em nada minha vida, que podia ter sido menos pálida se eu tivesse me deixado governar pelo fogo, pelo jasmim, pelo saxofone e pelo número 5. Bem, talvez o início da guerra do Vietnã naquele ano tenha suscitado em meu espírito um profundo desejo de paz, e a fundação da Igreja de Satã originado a impressão de um risco horizontal no meu olho esquerdo. Não sei.

A astrologia reversa diz que nasci Touro com a personalidade de Peixes. Paciência. O mundo andava muito louco em 1966... Manuel Bandeira fazia oitenta anos, ensinando ao mundo o Itinerário de Pasárgada, para onde finalmente aprendi a ir, mais de 30 anos depois. Nada mais. Apenas nascemos: eu, Zeca Baleiro e o terrorista iraquiano Abu Musab al-Zarqawi, enquanto a boca ávida de Bob Dylan procurava a gaita, nalgum lugar.

Em 1970, quando o Pelé voltou do México abraçado à taça Jules Rimet, eu ainda não tinha televisão em casa. Ainda não havia me dado conta de minha própria existência. Mas se tivesse televisão, certamente colocaria no canal do Capitão Aza. Um pouco depois o Etna entrou em erupção, a juventude entrou em erupção porque Jim Morrison se foi, as crianças entraram em erupção pelo maior parque de diversões do mundo, o Walt Disney World. Mas na época não fiquei sabendo de nada. Tinha cinco anos e talvez estivesse pensando no Nobel de Literatura do Pablo Neruda.

Passei os anos de 1972, 73 e 74 me guardando dos invernos implacáveis dos confins do Paraná. Nos dias hibernais, meu companheiro fiel era o Gato Felix, que me ensinou a compreender as primeiras frases escritas. De vez em quando a Vila Sésamo me despertava da letargia. Mas o ano de 1975 chegou e tudo o que me rodeava foi salvo dos insípidos anos de geada: descobri que existiam livros, e foi o princípio de um amor eterno, embora naquele tempo eu ainda saltasse de cima da cerca com uma fronha amarrada nas costas. Pensava que era o Flash Gordon.

1980 foi o primeiro ano do resto de minha vida porque topei de frente com o amor numa tarde de maio em que o sol de outono estendia caminhos amarelos sob as paineiras. Todos os amores que nasceram naquele ano foram embalados pela Imagine do beatle assassinado, pelos sonetos do Vinicius morto. O meu não foi diferente.

De lá pra cá dei mais 26 voltas ao redor do sol, plantando muito pé de flor que deu capim, capim que deu flor, e nada me desviou do caminho da circunspeção... nem a passagem do Halley, a queda do muro de Berlim, a carona que pegaram Drummond, Chico Mendes e Rubem Braga no relâmpago do adeus. Mas estive atenta ao mundo, vendo muita coisa que não queria ver e outras tantas que não pretendo morrer sem rever, como a chuva nas ruas esmigalhadas de solidão da cidade distante onde nasci.

Paro aqui de enumerar os anos porque daí pra frente “os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas”, embora não tenha mencionado relevâncias como as palavras em polonês que aprendi aos seis anos, os pássaros de papel na tarde de Curitiba, a música para alegrar o dia que aprendi com uma índia Karipuna, o encontro com o poeta vestido de branco que canta ainda que faça escuro...

Já é 1457 no calendário Armênio, 2258 no Rúnico, e o horóscopo continua me prometendo um pouco de ternura depois da lua cheia. Mas tudo está bem, enquanto vou achando que sou zen. Amanheço abraçada ao tempo, construindo as manhãs com mais esperança do que raios de sol. Entardeço enumerando sonhos na margem do meu rio, derramando uma a uma as páginas do livro de areia de Borges. Anoiteço dançando entre os cristais do sentimento das gentes, e adormeço no cheiro dos cravos capturados nos quintais da infância que continua a arder no sonho. No peito trago a vontade insondável de voltar a ter cinco anos, e não saber de nada. No espelho vejo o olhar sereno de alguém que gosto. Meu velho gato Stefen Fry anda por perto, vendo passarem os anos e os temporais.

4 comentários:

Anônimo disse...

Benvinda novamente ao show que nunca termina... Touro ascendente Peixes ? Acho que posso intuir algumas coisas, sou Peixes (25/02) ascendente Áries... O senhor Z., sim, esse é de Touro, signo da insistência, dos rios de criatividade... Benvinda. 1966 foi o ano de Revolver dos Beatles... entre outras coisas. Benvinda. Todos nós precisamos deixar o travo de amargura nem que seja um pouquinho para trás. Abraços. Caio.

Anônimo disse...

Muito bonito o texto. E com um ar despojado. Achei que a tua escrita voltou diferente... E que bom que voltaste! Fico tão contete.
Um beijo, mãezinha. Eu te adoro.

Anônimo disse...

Eu sabia.

Fábio Luis Neves disse...

Uma autobiografia...
e ainda carregada de poesia!
Que legal Luli, muito diferente.
Concordo com o comentário da Maria.

Beijos! Se cuida!
Ps: que bom que voltou a postar textos!