sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Encontros


“Debaixo de minha pele alguém me olha esquisito pensando que eu sou ele”.
Affonso Romano de Sant’Anna

Todos os monstros que me habitam estão despertos nesta noite. Gostam da madrugada, quando me sabem de olhos acesos tecendo teias na escuridão, e fazem festa diante de minha cama. Tenho náuseas por seus sussurros jocosos, por seu tamanho vulgar, por seus disfarces de bons amigos, sempre prontos a comemorar em cirandas os meus passos incertos.
Há anos que estamos em guerra, e o da impaciência, rude como um demônio, tem me vencido em várias batalhas. Tem sempre um sorriso nos lábios, e com toda a paciência que guarda somente para si, instiga-me a quebrar os cristais que não possuo, a estilhaçar o espelho em que me vejo nua, a invadir a sala de meus inimigos e esbofetear sua máscara, a lançar o telefone silencioso contra o muro do itinerário vazio por onde estou de braços dados com o monstro da solidão.
Este, o único por quem guardo certa afeição, e com quem desde o meu princípio mantive íntimos solilóquios, deixou de me incomodar quando compreendi que ser sozinho nada mais é do que ser. Acalanto-o com poesia, Paulo Leminski, Manoel de Barros, com quem se compraz com cara de monstro tolo. Parece amar-me. Tenho-o em boa conta por seu franco amor. Ao primeiro sinal de minha introspecção, vem me buscar pela mão, e anda comigo por onde há alegria ou aridez, feliz como quem traz “uma flor na lapela e uma namorada no braço”.

Há um que até esta noite dormia como um gato na quietude de um crepúsculo de minha alma. Mas agora que volto exausta de uma madrugada de encontros com a face torta das fraquezas do homem, de suas implacáveis razões de ser tristes, de sua inércia congênita e de minhas próprias pieguices, encontro-o tão desperto quanto os outros, a olhar-me do fundo de sua inexpugnável presença. É o da desesperança. Seu olhar de esperança morta me contempla com certa tristeza, mas não se demora a me envolver em um abraço longo, como um amante, a sussurrar em meu ouvido que agora eu sou toda sua, me propondo esquecer para sempre a minha melhor lembrança...
Seus dedos lascivos passearão pelos meus cabelos enquanto adormeço nesta noite em que ele é o rei. Estou certa de que ao despertar, ele, então como um anjo subserviente, mas dono de mim, me trará ainda na cama o café da manhã.

2 comentários:

Anônimo disse...

Uma coisa (ou três): realidade? literatura? tudo junto? Não precisa responder. Um abraço de domingo.

Maria disse...

Mãezinha, este de hoje me surpreendeu. Muito atual, humano e maduro. Perturbador. Gostei muito! O teu texto – que já é ótimo – está a cada dia melhor. Beijos