segunda-feira, 24 de maio de 2010

Viagem insólita

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No dia em que resolvi desancorar das palavras tortas, achei que tinha que ir pra bem longe de tudo o que me inspirasse desassossegos: sol do meio-dia, excesso de sal, gente que não sorri, livro com traça... Tomei a última arca, conduzida por Noé, neto de Matusalém, e por um destino de nuvens diáfanas, fui tentando levar um papo esclarecedor sobre o destino do homem na margem do próximo final do tempos. O que tu achas, Noé, que aconteceu com o homem desde o último fim do mundo? Noé disse que não sabia de homens, só de bichos. Noé, que em sua arca só transporta bichos, concordou em me levar naquela viagem porque me achou parecida com um. Com um gato? Perguntei. Não, disse Noé. Com uma garça? Insisti, cheia de esperança. Também não, disse ele, já com vontade de me jogar de dentro da arca. Que eu falava demais, que estava mudando de ideia sobre eu parecer bicho, que na sua idade (ele, que no dilúvio tinha já 600 anos) não tolerava tagarelice... Viajamos em silêncio rumo ao infinito, passando pelos portões do céu, fechados, pelo portal do inferno, de portas escancaradas – como a casa da mãe Joana – até o limite de minha paciência, quando enfim resolvi perguntar quem, afinal, era meu par naquele raio de arca onde só havia casais de bichos. Foi quando Noé pareceu se tocar. Pensou um pouco, e como um cara que teve sua história contada no Gênesis e no Alcorão jamais aceitaria a humilhação de não ter uma resposta, disse: Dá um tempo... o mundo nem tá acabando. A gente só tá dando uma voltinha. Sei, eu disse, pra encerrar o assunto, e enquanto Noé manobrava a arca em retorno ao Monte Ararat – de onde nunca devia ter saído naquele dia, pra variar fiquei olhando pras nuvens. E lá estava, sobre elas, o Arco da Aliança, símbolo do pacto de Deus com Noé, compromisso de Deus de se lembrar sempre de todos os seres vivos sobre a terra. Voltei pra casa com a esperança renovada, pensando na vida, na inutilidade de se incomodar com coisas pequenas: pão com formiga, talo de alface, fogos de artifício aos domingos... pensando por onde andará o bicho que será meu par na próxima viagem.

2 comentários:

Madame Poison disse...

Faça então uma boa viagem!!

Bisous!!

Alexandre Alves Neto disse...

Lulih, achei louco esse texto!!