sábado, 3 de outubro de 2009

Destempo

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Era a primeira vez em muitos anos que eu não via Florentino Ariza* sentado sob a acácia da praça, que eu não pensava em Florentino Ariza. A manhã havia parado de correr às 08 horas, cristalizada num tempo imóvel, no ar inerte, no súbito silêncio do trânsito e dos cachorros que suspenderam a travessia da faixa de pedestres para olhar em direção ao nada, pressentindo a imobilidade do tempo. O mendigo itinerante que naquele dia morava no canteiro ouviu a tristeza das raízes das papoulas sob a terra há dois meses sem chuva. Uma menina que viera de longe para assistir ao sol dos trópicos com sua pele amorim e sua sombrinha floral paralisou-se atenta ao céu, espremendo entre as pálpebras o azul juvenil das íris. Pelo tempo que durou o destempo. Passaram-se minutos que podem ter sido horas, que podem ter sido dias, meses, qualquer medida oficial de tempo, quando a manhã voltou a correr. Mas os relógios nos pulsos, nos bolsos, nos painéis ofuscados pela claridade das 08 horas marcavam ainda 08 horas. Foi quando os cachorros prosseguiram a travessia, o mendigo moveu o silêncio em direção à menina de sombrinha floral, que por sua vez apressou o passo atrás das borboletas que sobrevoavam as papoulas. Somente Florentino Ariza não voltou a aparecer sob a acácia. Foi necessário o destempo para apagar minha lembrança de Florentino Ariza.

*Personagem de Gabriel García Márquez em O amor nos tempos do cólera.

13 comentários:

luiz jorge disse...

MATILHA.
Nem bem eu havia abandonado Frederich.Eis que encontro Florindo.
Agora os dois sob cores diferentes.
Ambos frutos doces do mesmo ventre qua habita a sua Cabeça Criadora.
ljorge

jac rizzo disse...

Eu também conheço Florentino Ariza!
Às vezes o encontro na multidão de
personagens que habitam minhas lembranças. Gabriel García Márquez me faz companhia em tardes chuvosas e noites de frio na alma. E é possível vê-lo na cadeira da varanda, descansando. Ou em algumas
conversas existenciais pelos umbrais
das minhas janelas...

Lulih, cristalizo o tempo quando venho lhe ver.
Gosto de passear com a sua sensibilidade!

Alexandre Alves Neto disse...

Lulih, eu assisti ao filme "O amor nos tempos do cólera" e realmente Florentino é muito marcante, pra ficar muito tempo na lembrança.

Z. disse...

Prender a respiração,
Sinal dos Destempos.

Abraços.

Z,

Itália Antunes disse...

Eu também crio destempos, todos os dias. Pensei que era só eu.
Uns beijos!

Lulih Rojanski disse...

Luis Jorge,
Jac,
Alexandre,
Z,
Sunshine...
O destempo é bom para inverter as cores, o gosto, o itinerário das coisas. Obrigada por virem.

Mayara La-Rocque. disse...

Florentino Ariza passou por minha vida, me trouxe uma coléra de cartas e poesias, e todo o redemoinho dos destempos das horas e dos dias passados. O meu destempo acontece a todo o tempo.

Ernâni Motta disse...

Lulih, o destempo é uma necessidade ao ser humano, tal qual o ar, penso eu. Pois, ele nos faz serenar os ânimos, iluminar a alma e (quem sabe?) rejuvenescer o corpo.
Uma ótima semana para ti.
Beijos.

Lulih Rojanski disse...

May,
Florentino Ariza e Gerineldo Marquez (Cem Anos de Solidão) são os homens mais doces da literatura.

Ernâni,
Eu estava com saudades de ti...

Fernando canto disse...

Detemposemtempos
teustextosinspiram
outrostextos
expressas o nicho da memória no tempo do esquecimento.
Abs. Fernando Canto

Madame Poison disse...

Oi Lulih,

Finalmente abri as portas da minha humilde casa. Você será sempre bem-vinda.

beijo.

Ernâni Motta disse...

Lulih, a música para o final de semana, no meu blog, é em homenagem a você. Passe lá e veja o porquê.
Um ótimo fim de semana para você.
Beijos.

Fábio Luis Neves disse...

Lulih, você dialoga tão bem com o Garcia Márques... tem propriedade pra falar dele, pois é uma leitora que sentiu e experimentou todas as lacunas do seu texto. Não é fácil fazer essas releituras, é de tamanha responsabilidade, mas você cumpre com méritos esse diálogo...