segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Frederich

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Na manhã em que seu navio voltou ao porto de origem, Frederich Spassky estava nas tabernas do cais, agarrado às putas que faziam alvoroço em torno de seus olhos azuis e de sua pele curtida pelo sol de muitos mares. Foi abandonado para sempre nestas terras estrangeiras. Primeiro se desesperou, teve vontade de se matar, depois se acostumou, e fez do novo porto sua pátria. Arrumou-se na vida, arranjou mulher, filhos e um barco pesqueiro, embora nunca tenha deixado de pensar na Rússia e em sua amada Narkissa. Não sabe quantos anos tem. Diz ter chegado a uma idade em que não se contam mais os anos, mas se continuam a descobrir muitas coisas. Descobriu, por exemplo, onde é o lugar mais longe do mundo: a terra estrangeira. Frederich circula pelo cais com a desenvoltura dos experientes marinheiros e ainda ajuda a alimentar o mercado clandestino de ervas. Numa noite de cantorias na praia, chegou-se à nossa roda vestido de branco e com um sorriso trazido da juventude. Pediu um pouco do vinho em troca de um poema e nos fez a alma ferver de êxtase quando recitou Maiakovski em russo. Ontem me disse ter sonhado que atravessava um mar de tulipas amarelas. Hoje se demorou mais em seu aceno quando me viu na janela. Fiquei triste olhando ao longe sua cabeça branquinha, acesa pelo sol do cais. Frederich Spassky sabe que está prestes a encontrar o navio que levará a todos a uma pátria única.

6 comentários:

Alexandre Alves Neto disse...

Lulih, não se preocupe. Acho que sonhar com flores amarelas é sinal de vida longa. Um abraço.

julio miragaia disse...

adorei ver o wether em tua cabeceira. rsrsrs. ótimo esse conto e que rapaz esse frederich não? livre e cheio de si. bjos luli.

Z. disse...

Lulih. Já houve um Spassky. Ele chamava-se Bóris. Boris Vasilievich Spassky . Jogava xadrez, era Grande Mestre Internacional, foi campeão mundial de 69 a 72, quando perdeu o título para Bobby Fischer, no que foi considerado o Match do Século. Acabou naturalizando-se francês. Às vezes penso em uma pátria única. Abraços Z.

Z. disse...

Completando, as vezes acho fantástica a capacidade desses Spassky de dar xeque-mate na gente. Abraços.

Lulih Rojanski disse...

Alexandre,
Spassky agradece pelo bom presságio.

Miragaia,
Werther é tristíssimo.

Z,
Parece que os Spassky são sempre sábios.

Abraços a todos.

Fábio Luis Neves disse...

Carambaa, de verdade que me senti despatriado na leitura desse texto, e essa é uma sensação que busco a todo momento, sem sucesso, a gente está enquadrado na região, cultura e referencial dela a todo momento... o texto deu essa liberdade ao leitor. É incrível como temas como esse, tipo tema sem temática, pode nos levar ao deslimite dos dramas modernos, acho que esse é o verdadeiro intuito de uma Literatura pós-moderna, o amor, política, crimes, ciúmes, se desgastaram na falta de respostas e repetições e tem que ser primeiro destruídos para voltarem em temas despretensiosos como esse, é assim que a luta contra o digital/capital/circular/descartável pode existir. Viajei horrores, mas é assim que leio, parabéns belo texto Lulih!